quarta-feira, 27 de junho de 2012

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Entrevista - Lispector



Mãos



MISCELÂNEA
Revista de Pós-Graduação em Letras
UNESP – Campus de Assis

GRANDE SERTÃO - VEREDAS E SÃO BERNARDO - NARRATIVAS
DE UMA MODERNIIZAÇÃO EM SUSPENSÃO
Daniele dos Santos Rosa

RESUMO
Este breve estudo pretende problematizar
alguns aspectos importantes das obras de
Graciliano Ramos e Guimarães Rosa ¾
São Bernardo e Grande sertão: veredas
¾ que, inseridos em nossa história
literária, buscaram, por meio de recursos
estéticos diversos, transfigurar uma
realidade difícil de ser abarcada, tentando
identificar o que essas obras têm a nos
dizer enquanto narração de um país que
ainda está em busca de encontrar seu
próprio caminho no mundo. Pretende-se,
então, refletir alguns aspectos dessa
relação entre literatura e nação,
principalmente como a literatura pode dar
a ver, por meio de sua transfiguração da
realidade, os mecanismos que regem a
sociedade, em especial as forças que se
estabeleceram nas diversas fases de nosso
processo de modernização.

Daniele dos Santos Rosa

Miscelânea, Assis, vol.5, dez.2008/maio 2009 57

Graciliano Ramos e Guimarães Rosa são dois importantes autores
da literatura brasileira, pois além de transfigurarem momentos
importantes e decisivos do país em suas obras, ainda são responsáveis por inovar
o modelo de representação da nação. Suas obras representam o que há de melhor
na produção narrativa nacional. Dessa forma, um estudo que tem por intuito
estudá-los se torna relevante para a crítica literária, porque assim será possível
contribuir para o conhecimento das peculiaridades de cada artista, além de
possibilitar um outro “olhar” para o Brasil, em especial em períodos tão relevantes
como os anos de 1930 e 1950. Considerando a vasta obra dos dois escritores e
buscando um aprofundamento maior de análise, este artigo faz parte de um estudo
comparativo maior entre os dois romances São Bernardo e Grande sertão: veredas.
Aqui se buscará evidenciar as reflexões acerca das obras enquanto narrativas de
uma modernização peculiar de nosso país.
Essas obras, segundo Antonio Candido, encontram-se em períodos
diferentes do sistema literário nacional, implicando, ainda, formas diferenciadas de
produção estilística, de percepção de mundo e de apropriação da forma objetiva.
Assim, a obra de Graciliano encontra-se em um período no qual ocorre uma
“tomada de consciência ideológica de intelectuais e artistas numa radicalização que
antes era quase inexistente. Os anos 30 foram de engajamento político, religioso e
social no campo da cultura [...] de inserção ideológica” (CANDIDO, 2000, p. 182).
Dessa forma, essa “consciência” se realiza por uma percepção que também se dá
em âmbito político e social: volta-se o olhar narrativo, e por isso estético, para o
Nordeste, para a outra realidade do país que está além dos centros urbanos.
Contudo esse olhar não é mais aquele vislumbre pitoresco, mas algo desconfiado,
cujas preocupações principais estavam em âmbito das práticas sociais e ideológicas,
não mais com intuito de enaltecer as peculiaridades do país. A essa nova forma de
percepção da nação, Candido nomeou de “consciência catastrófica do atraso”, pois
possuía uma “perspectiva [...] pessimista quanto ao presente e problemática quanto
ao futuro [...]. Desprovido de euforia [...] leva[ndo] à decisão de lutar” (CANDIDO,
2000b, p. 142), cuja implicação estética principal é a ausência da necessidade
urgente de ruptura da linguagem, como ocorreu na primeira fase do Modernismo,
bem como a ênfase em questionamentos da função da literatura, sobre o papel do
escritor perante à arte e à sociedade e a relação entre ideologia e arte.
Já a obra de Guimarães Rosa, dentro desse processo da tradição literária,
assume uma nova perspectiva a partir do que se realizou na década de 1930. Já
não se encontra mais uma posição ideológica de luta seja na forma literária, seja
na posição do escritor enquanto intelectual. No entanto, a percepção estética do
subdesenvolvimento se agrava, atuando como “consciência dilacerada” (CANDIDO,
2000b, p. 162) de um atraso que não é mais circunstancial, é sistêmico, cujas
ações ou tentativas de mudança, nos anos de 1930, não conseguiram modificar.
Assim, há uma busca por elementos não-realistas, como o monólogo interior, a
elipse, bem como um retorno do mito, principalmente na obra de Rosa, mas tratase
de um retorno ao relato fantástico de tradição oral deslocado da realidade,
tornando-se “um modo de consciência histórico ou das coisas”, resultando em uma
passagem do local em direção ao geral, ou seja, “passagem da região para o
destino humano” (SCHWARZ, 1981, p. 44).
Tendo em vista esse ponto central de diferenciação, a leitura dos
romances implica também certas semelhanças que devem ser ressaltadas, como,
primeiramente, o tema principal baseado na contradição entre arcaico e o
moderno, tendo o resgate da oralidade como chave estilística. Essa contradição se
dá devido ao país estar inserido em um sistema mundo cujo interesse consiste em
absorver essas estruturas avançadas, mas seu atraso é parte de sua identidade e
sua posição nesse sistema é arcaica, pois esse atraso faz parte da nossa história
contemporânea, incluídos no sistema mundo do capital e de seus avanços e recuos.
Assim, essas obras participam da tradição literária nacional e do sistema
literário ao permanecerem como tema fundamental comum a contradição entre o
arcaico e o moderno, permanecendo a dialética entre localismo e cosmopolitismo
como um problema central da Literatura brasileira. Outra especificidade que os
aproxima, apesar da distância temporal, é a classificação ¾ pela crítica literária ¾
como regionalistas. Quanto aos aspectos estruturais, as principais semelhanças
que podem ser apresentadas são: a narração feita em primeira pessoa por um
narrador-personagem em um tempo ulterior, cuja característica principal é a
narração em abismo, em que se realiza o relato de um exame de consciência feito
na velhice, cujo intuito é compreender os acontecimentos da vida. Esses dois
romances ainda se ambientalizam no sertão, o de Graciliano no sertão nordestino
e o de Rosa no sertão mineiro, os quais, apesar de possuírem características
diferentes, ou até opostas, aproximam-se pelo distanciamento ao meio urbano,
tratados como ambientes rústicos e arcaicos do país. Outra importante
característica em comum é o problema da modernização sendo tratado tanto em
âmbito de enredo como no próprio processo de realização da obra, pois esses dois
romances são produtos também de fases de modernização do país.
Por meio do enredo de São Bernardo (modernização rápida do Nordeste
brasileiro demonstrado pelos esforços de Paulo Honório em adquirir a fazenda) e
de Grande sertão: veredas (tentativa de finalizar as ações dos jagunços por meio
da própria jagunçagem, pacto com o Diabo cujo intuito é vencer o inimigo
Hermógenes, mas também ascender de classe) percebe-se que se trata de dois
processos de modernização diferenciados: o primeiro transfigura “o capitalismo
brasileiro em seus primórdios” (DACANAL, 1982, p. 20), em que se promoveu a
modernização agrícola em detrimento da transformação do homem rural em
trabalhador rural, possuidor de direitos, permanecendo como lugar de exploração
e do poder restrito a poucos, em que Paulo Honório é o “representante da
modernidade que entra no sertão brasileiro, é o emblema complexo e contraditório
do capitalismo nascente” (LAFETÁ, 2004. p. 81) e sua falência enquanto
empreendedor e enquanto ser humano pode mostrar também a falência de um
projeto que não dá certo no país. Já no segundo, pode-se perceber como se narra
a tentativa de urbanização das regiões atrasadas do país, na qual o próprio sertão
e seu produto, os jagunços, não fazem parte, devem ser “eliminados” para que
assim se chegue à modernização, em que a narrativa de Riobaldo pode ser uma
forma de resgate de algo que não existe mais ou que está fadado ao fim. Assim, é
possível encontrar os resíduos dessa modernização, restos que não conseguem se
efetivarem na modernização do país.
É importante notar como esse problema da modernização pode ser
evidenciado pelo conflito maior que há na literatura brasileira entre o
cosmopolitismo e o localismo já mencionado. A modernização já é uma tentativa
de universalização. No entanto, é possível perceber que, devido às condições
próprias de país periférico, essa universalização não ocorre de forma efetiva, pois a
modernização é restrita a certos grupos, permitindo que grande parte da
população torne-se alheia às transformações. Essa parte então excluída pode ser
“assimilada” como representação da verdadeira identidade nacional, por meio de
um localismo exacerbado, recebendo assim um tratamento pitoresco, afastandoa
ainda mais da modernização. Ou, então, é inteiramente esquecida, sendo
apenas incluída nos subprodutos dessa modernização, como na cultura de
massa, por exemplo, travestida de avanço e integração.
Dessa forma, a aproximação e o distanciamento que parece se realizar de
uma forma dialética entre esses romances deve ser investigada. É necessário se
perceber dentro do sistema literário o que permaneceu e o que se alterou na
forma estilística e na forma de transfiguração da forma objetiva, buscado assim
uma percepção melhor tanto da Literatura quando das relações sociais do país.
Assim, é preciso verificar como os romances mencionados, ao tratarem da
modernização por meio da tentativa de resgate de um modo ainda arcaico de
relação social e de linguagem, podem demonstrar como essa dialética entre o local
e o universal se dá na sociedade brasileira, mostrando como ainda coexistem
esses dois pólos tanto na transfiguração narrativa do país por meio das trajetórias
de Paulo Honório e Riobaldo, bem como na própria fatura textual, seja na negação
da linguagem enquanto instituição, seja na tentativa de junção de linguagens
culturais diferenciadas. Para tanto, se buscará perceber alguns aspectos da
importante relação entre a forma literária e o processo social a partir das relações
dos narradores, Paulo Honório e Riobaldo, com seus personagens, inseridos na
narrativa em momentos de modernização do país.
São Bernardo, publicado em 1934, é, como afirma Faria (2006, p. 8), “a
narrativa da modernização”, ou seja, relata-se a tentativa de modernização do
Nordeste, em um período em que a produção dessa região tinha lugar no
mercado externo, em que a necessidade de maquinários, de construção de
estradas e de benfeitorias “modernas” nos latifúndios fazia-se necessária. Paulo
Honório é, dessa forma, um empreendedor, é aquele que buscará o avanço da
região, tornando-se um latifundiário: senhor de terras e de homens. Tendo
trabalhado no eito da fazenda São Bernardo, resolve possuí-la, para isso aprende
aritmética para não ser usurpado em seus primeiros empréstimos, torna-se um
negociador de diversos artigos pelo sertão e assume-se como “capitalista”
(RAMOS, 2006, p. 25) de profissão. Retorna a Alagoas, torna-se dono da fazenda
e como seu objetivo era o progresso na fazenda, fez que tudo o que ali se
produzisse ou construísse fosse possibilidade de acumulação de capital: “a escola
seria um capital. Os alicerces da igreja eram também capital”, enfim, Paulo
Honório torna-se proprietário, um agente do processo modernizador em voga no
país, o qual buscava a superação do atraso por meio da modernização nas
relações produtivas e comerciais.
Esse projeto modernizatório demonstra todo um processo histórico ao
qual passa o país no sentido de se adequar conforme as determinações do
sistema mundo. Assim, percebe-se que desde a década de 1920 e principalmente
em 1930 há um esgotamento das potencialidades econômicas baseadas quase
que exclusivamente na agricultura e há um empenho de modernização advindo
com o investimento nas fábricas e na urbanização das cidades, que se prolonga e
se intensifica nos anos de 1950, como a política desenvolvimentista. No entanto, é
importante perceber que desde a Primeira República foi preciso consolidar um tipo
de organização de poder baseado na organização liberal, mas tendo em sua base
vários grupos, com diversos interesses e concepções, que disputavam o domínio
do país, agora sobre um possível ideal democrático. Dessa forma, a consolidação
dessa forma de poder contribuiu para a concretização de uma autonomia aos
Estados, baseada no poder das diversas oligarquias e de seus interesses para seu
Estado e suas relações com o poder central.
Diante disso, a década de 1950, momento de produção de Grande sertão:
veredas, caracteriza-se pelo processo desenvolvimentista do país, promovido por
Juscelino Kubitschek, cujo intuito era permitir o país inserir-se na nova fase de
industrialização e desenvolvimento tecnológico vivido pelo mundo capitalista,
tendo como base o desejo de integrar o interior do país ao seu centro, ou seja,
em um âmbito maior, integrar o Brasil ao mundo, nossa tradição arcaica ao
moderno. No entanto, a leitura do romance indica um aspecto muito curioso, pois
a narrativa retorna a um tempo outrora, volta-se a uma fase anterior da
modernização, ao período inicial de investimento na industrialização e na
urbanização, momento este em que há uma tentativa de adequação do país as
novas formas produtivas e comerciais do sistema mundo, centrados no Centro-Sul
do país, momento este muito característico, também, pela tentativa de mudança
social buscada pela Revolução de 1930 e de várias mobilizações sociais suscitadas,
principalmente, pela possibilidade de mudança trazida pela Revolução de 1917.
Assim, a tentativa de modernização agrária do Nordeste, sua suspensão
devido ao interesse atual na urbanização e industrialização de centros urbanos, o
vínculo entre a nascente burguesia industrial e os latifundiários do Centro-Sul,
também será tratada em Grande sertão: veredas, no entanto, a partir de uma
perspectiva diferenciada, na qual esse projeto de modernização pode ser visto por
outro ângulo, mas que, juntamente com São Bernardo, permitirá uma percepção
mais completa desse importante processo. É importante salientar que tanto no
romance de Graciliano Ramos como no romance de Guimarães Rosa o processo
estético de transfiguração da realidade, ou seja, transformar em forma literária a
forma objetiva, se dá por meio de um refinamento do documento em que ao
superá-lo como descrição da realidade assume-se como ficção e fortalecem sua
força sugestiva, como bem salienta Candido ao tratar de Guimarães Rosa, cuja
reflexão pode ser muito bem estendida à Graciliano Ramos:
Isto significa que Guimarães Rosa tomou um tipo humano
tradicional em nossa ficção e, desbastando os seus elementos
contingentes, transportou-o, além do documento, até a esfera onde
os tipos literários passam a representar os problemas comuns da
nossa humanidade, desprendendo-se do molde histórico e social de
que partiram (CANDIDO, 2004, p. 120).
Grande sertão: veredas trata, então, da abertura do sertão a essa
modernização, cujo desejo de finalizar as ações dos jagunços é a tentativa de
superação de antigas estruturas políticas por novos modelos de relação
baseadas nas tentativas do país de se incluir na modernização do sistema
mundo. É, neste período, que a literatura se apropria ainda mais dos
ingredientes regionais e particulares do país a fim de transfigurá-lo e torná-lo
universal. Por outro lado, a perspectiva de São Bernardo é de quem atua nesse
processo, mas seu beneficiamento não é pleno devido às próprias regras e
conseqüências da expansão do capital.
Como se repete inúmeras vezes nos capítulos iniciais de São Bernardo,
Paulo Honório torna-se um capitalista, assume essa posição no projeto de
modernização do país, no entanto, verifica-se que as relações sociais, em especial
as trabalhistas, não sofrem também uma tentativa de mudança, de modernização,
constituindo, então, uma modernidade em suspensão, sem ocorrência plena e
efetiva. Na verdade, as formas de divisão do trabalho permanecem, os antigos
sistemas patriarcais e clientelistas ainda regem e comandam as relações tanto de
Paulo Honório com Marciano, Maria das Dores e outros empregados, até com
aqueles que assumem a posição de agregados, recebendo favores e servindo ao
protagonista, como Seu Ribeiro (guarda-livros), Costa Brito (jornalista) e Luís
Padilha, chamado para ser professor na fazenda.
No Capítulo VI, no qual se narra a trajetória de Seu Ribeiro, é possível
identificar dois importantes aspectos desse projeto de modernização social, como
a imposição de novas tecnologias e a manutenção das relações sociais. Seu
Ribeiro, considerado “major” em seu povoado, era quem conduzia a
administração local, resolvia as questões litigiosas, enquanto sua mulher cuidava
das questões religiosas, ou seja, “major decidia, ninguém apelava. A decisão do
major era um prego”. No entanto, esse povoado começa a sofrer modificações,
torna-se vila, constrói-se a estrada de ferro e, com isso, chegam à cidade os
chefes políticos e as máquinas. Assim, todo o poder de decisão e o domínio do
Seu Ribeiro sobre a pequena população começa a definhar, a sua propriedade,
cuja produção era obtida pelo trabalho comunitário, descrito pelo narrador como
praticada por “todo o mundo [...] porque todo mundo era do major”, acaba por
decair e parar sua produção.
É importante notar como esse capítulo é narrado como uma fábula, como
uma estória acontecida em um tempo outro, em que tudo pareceria perfeitamente
encaixado, sem problemas ou conflitos, como mostra a descrição irônica sobre as
relações de trabalho na propriedade de Seu Ribeiro: “e os pretos não sabiam que
eram pretos, e os brancos não sabiam que eram brancos”, ou seja, evidencia-se
uma igualdade de direitos que na verdade não existia já que todos dependiam do
major e eram por ele explorados. Assim, essa mudança estrutural que sofre o
povoado de Seu Ribeiro e sua decadência pode ser identificada também como um
índice de como se dará a trajetória modernizadora de Paulo Honório, já que para
o protagonista o problema da decadência de Seu Ribeiro foi sua falta de
percepção da mudança e sua inclusão nesse novo processo, pois para ele era
preciso que o major andasse mais depressa.
No entanto, percebe-se que o problema não está concentrado somente
nas atitudes ou ausência delas, mas sim na própria estrutura dos processos
modernizadores do país que, ao apropriar-se de novas técnicas, insere-as sem,
contudo, transformar as estruturas sociais. Seu Ribeiro, como outros latifundiários,
faliram no momento em que se investiu numa forma de trabalho diferenciada da
escravidão e em maquinários, por não se tornarem capitalistas como Paulo
Honório, mas o problema maior disso é perceber como a base de trabalho
exploratório se manteve e se manterá mesmo, com poucas alterações, depois da
consolidação do processo capitalista em nosso país.
Assim, o capitalismo brasileiro não contou diretamente com uma ideologia
utópica burguesa que levasse a tentativas mais radicais e mais práticas, como se
deu na Europa, que mesmo ao demonstrar sua impossibilidade, acabou por obter
alguns resultados. No Brasil, a evolução do capitalismo parece se processar
contraditoriamente e também dependente da manutenção de estruturas précapitalistas,
no sentido em que se tornou muitas vezes um estímulo para a
manutenção das velhas condições sociais pertencentes a modos de produção
anteriores e estagnados. Isso se dá porque, como afirma Faria,
A inserção do país no processo modernizador, no entanto, previa
a manutenção de estruturas arcaicas no país, como manutenção
da mão de obra barata para atender à imposição de vantagens
comerciais para os grandes centros capitalistas. Esta era a
condição sine quan non para a participação dos países latinoamericanos
no capitalismo mundial e que introduziu
definitivamente nestes países a vigência de uma temporalidade
dupla ¾ arcaico-moderna ¾ no país (FARIA, 2006, p. 44).
Essa ausência de rupturas efetivas no sistema social do país em oposição
a uma efetiva inserção e modernização de técnicas industriais insere no país essa
dupla temporalidade, que como afirma Bastos (2005, p. 133), provêm da própria
condição de formação a partir do par local e universal, cuja enunciação se dá pela
contradição dialética entre arcaico e moderno, “atraso/progresso,
periferia/centro”. É importante perceber como essa inicial oposição se estabelece
de forma dialética, pois convivem ao mesmo tempo em que se contrapõem, já
que é essa condição que possibilita a inserção do país no sistema mundo
moderno. Assim, a condição para a “modernização” do país, atendendo à
demanda das elites nacionais e estrangeiras, apoiava-se na própria manutenção
das formas arcaicas de relação social e trabalhista, fixando no país um movimento
confuso entre avanço e imobilismo, coexistindo as formas mais requintadas de
produção material ao lado dos processos mais cruéis de trabalho.
Essa mesma contradição evidencia-se em Grande sertão: veredas pela
própria existência do sertão e, principalmente pelo formato que as relações sociais
ali se estabelecem. A afirmação de Selorico Mendes, pai de Riobaldo, já evidencia
esse processo, pois para ele o sertão se constituía como “Política! Tudo política, e
potentes chefias” (ROSA, 2006, p. 104), em que a precariedade do interesse e
sentido público se contrapõe ao próprio interesse liberal das imposições políticas
liberais da República, em que a representação política e o reconhecimento social
se estabeleciam de “ponderadas maneiras” no sentido em que se fundamentavam
a partir de sua ligação com a “linhagem de família”.
Nesse sentido, a partir de uma política estatal liberal, o que se tinha eram
a coexistência e a convivência de um patriarcalismo baseado na propriedade
privada, nas relações arcaicas de domínio de terra e agregados, ao mesmo tempo
em que o acúmulo de capital, enquanto perspectiva moderna, bem como a
necessidade e interesse na modernização se salientam profundamente, tanto na
perspectiva de seu Habão que, conforme Riobaldo, desejava “reduzir tudo a
conteúdo”, pois seu interesse não estava voltado às lutas entre os jagunços mas
em transformar tudo e todos em trabalho e acumulação para seu benefício
próprio, já que desejava “Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a
gente pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Até
enjoei [...] Mas a natureza dele queria, precisava de todos como escravos” (ROSA, 2006,
p. 388).
Assim, para Bolle, o ponto central da narrativa de Guimarães Rosa em
Grande sertão: veredas, o possível pacto de Riobaldo nas Veredas-Mortas, “é uma
representação criptografada da modernização do Brasil”, pois demonstra o quanto
esse processo se deu, e parece continuar, de forma “contraditória e perversa”
(BOLLE, 2004, p. 148.). Para o autor, essa modernização baseia-se,
principalmente, em um projeto político estabelecido como resposta às demandas
externas, o qual se fundamenta na aliança entre o campo e a cidade, tendo por
objetivo a “abertura do sertão à modernização, superação das estruturas políticas
baseadas no crime e na violência, transformação dos padrões de gosto e
mentalidade”, já que esse pacto entre classes, de base ambígua, se dá entre os
latifundiários e a burguesia industrial nascente, conforme indicado anteriormente.
Nesse sentido, verifica-se que as lutas na parte inicial do romance, cujo objetivo
de seu principal chefe, Zé Bebelo, era “sair pelo Estado acima, em comando de
grande guerra. O fim de tudo [...] romper em peito de bando em bando [...]
liquidar com os jagunços [...] ser deputado”, é uma tentativa de “modernizar o
sertão”, que vem desde a campanha de Canudos, tratada por Euclides da Cunha
em Os Sertões, que demonstra a principal característica do país: a contradição
entre o arcaico e o moderno.
Essa contradição mostra-se latente em todo o romance. Riobaldo ao
buscar definir o que é o sertão sempre o evoca como um espaço sem ordem, sem
lei, “é o sem-lugar que dobra sempre mais para adiante, territórios”; "Sertão, é
isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo", ou seja, é o lugar que está longe do
meio urbano e, por isso, torna-se seu avesso, local onde as pessoas carecem de
princípios civis, local aonde a modernização não chega, ou melhor, tem de ser
destruído ou esquecido, para que essa ilusão modernizadora se concretize. Nesse
sentido, verifica-se que a narrativa de Grande sertão: veredas é, em si, a
transfiguração da sociedade dilacerada entre classes sociais que estão separadas
social e economicamente, cuja tentativa de modernização parece aprofundar
essas diferenças, em que o que se demonstra não é um avanço social no país,
mas a sua deteriorização, explicitada pelas ruínas que esse processo não abarcou,
como elucida Starling, o romance de Rosa é a:
Toponímia de ruínas, fragmentos, resíduos de tudo o que o Brasil
modernizado não consegue mais aproveitar e descarta por
improdutivo, supérfluo, inútil: a massa compacta de vaqueiros,
jagunços, tropeiros, garimpeiros, romeiros, [...] sem teto, sem
terra, sem coragem, sem direitos, sem futuro e sem existência
política (STARLING, 1999, p. 16).
Ou seja, a narrativa de Riobaldo traz, transfigurada, a própria posição do
país suspenso entre o desejo universalista de inserção no sistema-mundo, sempre
constante em nossa formação histórica, e nosso particularismo manifestado seja
na decadência na produção e evolução de uma região como o Nordeste, devido à
mudança de rumo do capital nacional e internacional, seja na exclusão de parte
da população avessa ao progresso, pois esses dois processos ligam-se
intimamente pela própria condição de incompletude do país, em que o avanço
convive dialeticamente com o retrocesso, em que coexistem a miséria e a
abundância, em que demonstra seu principal aspecto: a barbárie não é o oposto
da civilização, mas sim sua condição de existência, seu avesso contraditório e
dialético.
Um dos personagens extremamente característicos desse processo de
tentativa de modernização do sertão e de suas conseqüências é o jagunço Zé
Bebelo. Seu diferencial dos outros chefes já aparece no início da narrativa: decide
aprender a ler e escrever, tendo o jovem Riobaldo como professor. Assim,
assumindo essa nova condição de semi-letrado no sertão, aquele que é
“inteligente e valente”, assume também a posição de possivelmente ligado ao
governo e resolve sair pelo sertão a fim de acabar com a jagunçagem por meio da
própria luta entre jagunços. Seu intuito, no entanto, não se restringe à luta, mas é
tornar-se deputado após a vitória e, assim: “estável que abolisse o jaguncismo
[...] então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas,
remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas”.
Para isso, sua luta se baseia nas armas, nos homens sob seus mandos, como
inicialmente Riobaldo, e em seus discursos a “serviço da pátria”, como o próprio
recomenda a Riobaldo a “falar muito nacional!”. É muito interessante perceber
como seus discursos encaixam tanto em seu momento histórico, a República
Velha, como se adequou ao período da década de 1950, que é o discurso
ideológico nacionalista que, segundo Starling (2006), acompanha a República
desde sua implantação no Brasil.
Enquanto em São Bernardo é o protagonista-narrador que promove a
modernização, em Grande sertão: veredas o processo modernizador é proposto
por um personagem, Zé Bebelo, que percebe o sertão como um passado a ser
superado, pois
seu próprio projeto político, de natureza reformista e critérios
fortemente racionalizadores, alimentado cotidianamente pelo
propósito de tomar posse do sertão e inscrever em sua superfície
um novo corpo coletivo, necessariamente popular, comum,
centralizador, homogêneo e totalizante ¾ o projeto de construção
de um “sertão nacional”, como ele sempre fez questão de afirmar.
(STARLING, 1999, p. 139)
Assim, a trajetória de Zé Bebelo de ascensão a chefe de jagunços e sua
derrota frente à impossibilidade de modernização do sertão transfigura em todo o
romance a tentativa de desenvolver seu projeto político de se tornar Deputado e
assim “transformar aquele Sertão inteiro do interior, com benfeitorias, para um
bom Governo, para esse ô-Brasil”, muitas vezes indo de encontro às vontades e
determinações de outros chefes, como até mesmo a de Joca Ramiro, que
desejavam a manutenção das estruturas que formação as relações sociais no
sertão, sem a interferência totalizadora governamental.1 Tal projeto demonstravase
como uma resposta a essa dupla temporalidade que se estabelecia no sertão e
poderia ser identificada pela diferença entre as duas margens do Rio São
Francisco, em que uma representava o arcaico, a imobilidade e o vazio dos Gerais,
enquanto a outra destinava-se a ser o acesso ao moderno, a possibilidade de
horizonte e de progresso. Um progresso que, porém, não era visto sempre com
bons olhos já que Riobaldo se espantava com as tentativas modernizadoras de
certas cidadezinhas que, à troca constante de nomes já enunciava em si a
impossibilidade de um progresso pleno.
Nesse sentido, assim como as referências feitas ao período de formação
da Revolução de 1930 são bem evidentes no romance, aspectos bem peculiares
da então chamada Revolução democrática iniciada com a implantação do Estado
Novo e fortalecida, principalmente, pela política baseada no populismo
nacionalista de Juscelino Kubitschek está presente, principalmente, na
caracterização das ações de Zé Bebelo. Assim, essa própria característica
contraditória da ação desse personagem como ser político e jagunço, desejar
combater os desmandos dos jagunços por meio de uma guerra entre jagunços, é
similar ao próprio antagonismo trazido pela prática do populismo que, como
elucida Bolle: “o populismo é um sistema de antagonismos. Como política de
aliança de classes, é uma política de aliança de contrários” (BOLLE, 2004, p. 359).
1 Starling propõe uma comparação bem detalhada entre os interesses e propostas políticas dos
principais chefes, desde Medeiro Vaz e de sua imposição de poder e formas de comportamento
até as mudanças radicais tentadas por Zé Bebelo na perspectiva de organização social e política
do Sertão. Ver: STARLING, H. M. M. Lembranças do Brasil ¾ teoria política, história e ficção em
Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Renavan; IUPERJ; UCAM, 1999.
Outro aspecto dessa figuração feita por Guimarães Rosa diz respeito aos
próprios discursos de Zé Bebelo. Sua própria tentativa de modernizar o sertão por
meio de palavras e do incitamento aos elementos nacionais é característica do
período nacional-desenvolvimentista do projeto de JK, assim como é muito
revelador o discurso feito pelo chefe dos jagunços em um local chamado
“município de Brasília”, cujo objetivo era novamente “falar muito nacional”,
evidenciado bem como a construção da nova capital do Brasil, ligando o interior
ao litoral, era uma promessa de que assim o país se modernizaria e promoveria “a
superação do estado de subdesenvolvimento da nação” (BOLLE, 2004, p. 363),
conforme o próprio candidato a futuro deputado anunciou: “Zé Bebelo elogiou a
lei, deu viva ao governo, para perto futuro prometeu muita coisa republicana”.
No entanto, a leitura do romance demonstra como o intuito de Zé Bebelo
mostra-se frágil, sem consistência, como pode ser visto na própria reação de
Riobaldo que não acredita em suas promessas e vê em seu antigo aluno alguém
que apenas “fala”, cujas intenções parecem não corresponder aos discursos e
afirmações que já trazem em si a impossibilidade de concretude: “começava por
aí, durava tempo, crescendo na fraseação, o muito instruído no jornal. Ia me
enjoando. Porque completava sempre a mesma coisa.”. Nesse sentido, Zé Bebelo
é acusado, em seu julgamento quando preso pelo grupo de Joca Ramiro, de
“desnortear”, ou seja, de tentar tira do “norte”, do sertão, suas características
peculiares, ou melhor, compactua com o desejo governamental de dar fim ao
sertão para então construir cidades urbanizadas e modernas.
No entanto, assim como o destino do personagem é perder-se no sertão,
desistir da chefia, assim também o projeto modernizador não se concretiza, se
perde em suas promessas, pois o que realiza é um distanciamento maior entre o
local arcaico e suas populações desprivilegiadas e uma minoria que se moderniza
ao passo das demandas externas. Até a situação final de Riobaldo como
latifundiário e dos outros jagunços que sobrevivem em estrema pobreza e
mendigação, ao final da narrativa, demonstra a não concretização dessas
promessas. Na verdade, esse fato é narrado bem no início da obra, mostrado
como um indício de que todo esse processo modernizador realmente não mudaria
a situação da população do sertão, seriam promessas em suspensão, cujas
estruturas sociais se manteriam.
Nesse sentido, diferentemente de São Bernardo em que se evidencia a
decadência de um latifundiário diante do processo modernizador que exclui boa
parte da população e, sendo perverso em si, acaba por transformar seu agente em
vítima também, em Grande sertão: veredas não há a decadência de Riobaldo, por
exemplo, que como filho de latifundiário, o senhor Selorico Mendes, acaba por
receber de herança terras tornando-se senhor de “gados e homens”, mostrando-se
em uma posição tranqüila, cujos moradores, ex-jagunços e agora seus subalternos
trabalhadores rurais, o protegem, como antes acontecia com seu pai, mas ao
mesmo tempo evidencia que o projeto de Zé Bebelo se desfaz e este se perde no
sertão.
Assim, verifica-se nestes romances um processo modernizador que se
impõe ao país, mas que na verdade não se altera as estruturas sociais. As lutas de
Riobaldo e Diadorim contra Hermógenes talvez tenham dado fim aos desmandos
da jagunçagem da região, no entanto, a estrutura social do latifúndio e a
exploração do trabalho permanecem, não há nenhuma tentativa de mudança nas
condições subumanas de vida dos catrumanos, nem mesmo nos discursos de Zé
Bebelo. A própria presença dos catrumanos na narrativa é de grande importância.
Eles se contrapõem não só ao grupo de jagunços, mas àquilo que Riobaldo
posteriormente se tornará. Se o fim do poderio dos jagunços permitiu um avanço
ao sertão, uma modernização como clamava Zé Bebelo, nada disso foi capaz de
alterar a situação seja dos catrumanos, seja do resto da população.
Dessa maneira, esses dois romances acabam por transfigurar todo um
período de grande importância para o país, momento este de consolidação da
República e de tentativa de implantação no país de suas promessas liberais e
modernizadoras. No entanto, mostram que o país está sempre “correndo” atrás de
um prejuízo que se revela em sua arcaidade e precariedade social, cujo objetivo de
tornar-se uma nação verdadeiramente livre e soberana, uma nação não apenas
com posição privilegiada no sistema mundo, mas um avanço que permitisse a
inserção das camadas sempre desprivilegiadas, fica sempre em suspenso. Por isso,
perceber que nosso atraso é sistêmico e não casual ou momentâneo e também
perceber que um projeto de modernização do país ligado aos interesses externos
que não somasse forças com uma tentativa de mudança social ¾ como fizeram
esses escritores ¾ é evidenciar sua própria falha. Isso demonstra que essas ações
somente farão com que este atraso se evidencie ainda mais, mostrando que essa
situação de pobreza não é só um problema a ser resolvido pelo processo
modernizador, mas trata-se do avesso não só das elites e das cidades
desenvolvidas do país, mas mostra o Brasil também como o avesso de todo um
projeto de desenvolvimento mundial, conforme é possível ver nas narrativas
desses dois importantes autores.
Portanto, o reconhecimento da posição do país no sistema mundo que a
literatura disponibiliza é de grande importância para qualquer tentativa de
mudança nas relações sociais e políticas. Assim, o conflito que se estabelece entre
os dados locais, a particularidade do país, e a forma ideológica de percepção e
relato do mundo, importada pelos intelectuais, não é somente a base da
estruturação literária, mas evidencia também o nosso principal dilema enquanto
país. Em resposta a isso, buscar compreender que respostas Graciliano e
Guimarães deram a esse conflito ¾ em especial como suas literaturas
equacionaram o problema da modernização tardia, seja pelo retorno ao passado,
ao mítico, a uma linguagem regional ou à criação de uma nova linguagem, seja
por falar do sertão no momento em que esta região está fadada ao fim, em que
perde sua importância e valor para as cidades e para a tentativa, a todo custo, de
modernização e urbanização do país, como e por que falar de um passado que não
passou, que é presente e realidade ¾, isto é, o que São Bernardo e Grande
sertão: veredas têm a nos dizer enquanto narração de um país que ainda está em
busca de encontrar seu próprio caminho no mundo.
Daniele dos Santos Rosa
Miscelânea, Assis, vol.5, dez.2008/maio 2009 

Referências bibliográficas
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Clarice Lispector



BENEDITO NUNES: RELAÇÕES DA OBRA DE CLARICE LISPECTOR COM TEORIAS DE SER E TEMPO DE HEIDEGGER
Maria de Fatima do NASCIMENTO
RESUMO: Benedito Nunes (1929-2011) começa o trabalho de crítica literária nos jornais e periódicos de Belém do Pará, como colaborador do Suplemento Literário “Arte Suplemento Literatura”, do jornal Folha do Norte, de 1946 a 1951, posteriormente continua atuando na crítica literária, divulgada em revistas, jornais literários nacionais e em livros, como: O Mundo de Clarice Lispector (1966) e O Dorso do Tigre (1969). Neste trabalho, faz-se um recorte da segunda parte da Tese de Doutorado em andamento Benedito Nunes e a moderna crítica literária brasileira (1946-1989), em que serão apresentados aspectos críticos de “A náusea”, ensaio que, ao lado de mais quatro: “A experiência mística de G.H”; “A estrutura dos personagens”; “A existência absurda” e “Linguagem e silêncio”, integrou o livro inicial de crítica literária de Benedito Nunes, O mundo de Clarice Lispector (ensaio), no qual ele relaciona a produção dessa autora com as teorias desenvolvidas em Ser e tempo, de Martin Heidegger.
Palavras-chave: Benedito Nunes, Crítica literária, Romance brasileiro, Filosofia.
A Tese de Doutorado em andamento Benedito Nunes e a moderna crítica literária brasileira (1946-1989) tem como proposta a sistematização de estudos sobre o crítico e pensador Benedito Nunes no período de 1946 a 1989. Os procedimentos metodológicos centraram-se em dois eixos: a) um corte temático representado pelo estudo do acervo produzido por Nunes e publicado em periódicos local e nacional (1946 - 1960); b) estudo do conjunto de sua obra crítica publicada sobre literatura, a saber: O mundo de Clarice Lispector (1966), O dorso do tigre (1969), João Cabral de Melo Neto (1971), Leitura de Clarice Lispector (1973), Oswald canibal (1978), O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector (1989). Além disso, recorreu-se a obras filosóficas de Martin Heidegger, como Ser e tempo (1927), para entender a relação de Benedito Nunes com a filosofia heideggeriana e as correntes hegemônicas da produção crítica brasileira da segunda metade do século XX. Também agregou-se, a esta investigação, a recuperação de acervos publicados em jornais e revistas, sobretudo em Belém do Pará, caracterizando as primeiras incursões críticas de Benedito Nunes.
Neste trabalho, faz-se um recorte da segunda parte da tese em questão, em que serão apresentados aspectos críticos de “A náusea”, ensaio que, ao lado de mais quatro: “A experiência mística de G.H”; “A estrutura dos personagens”; “A existência absurda” e
1 Doutoranda em Teoria e Crítica Literária do Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista da CAPES. Orientadora: Profª. Drª. Suzi Frankl Sperber.

“Linguagem e silêncio”, integrou o livro inicial de crítica literária de Benedito Nunes, O mundo de Clarice Lispector (ensaio), no qual ele relacionou a produção dessa autora com as teorias desenvolvidas em Ser e tempo, de Martin Heidegger.
O mundo de Clarice Lispector (ensaio) foi publicado em 1966, em Manaus, pelo governo do Amazonas, com pequena tiragem. Os ensaios do referido livro já haviam sido publicados em jornais e revistas. Neles, Nunes faz uma análise baseada na filosofia da existência, principalmente, a de Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre.
Clarice Lispector, de todos os ficcionistas estudados por Nunes, está no centro de suas atenções. Os romances e contos da autora de Laços de família (1960) são importantes para as reflexões do pensador belenense sobre filosofia e literatura. A propósito, num artigo publicado em 2005, “Meu caminho na crítica”, onde faz um balanço de sua trajetória de crítico literário, começa citando a autora que, por meio de seus escritos, leva-o a refletir sobre a cultura e a natureza.
O ensaísta paraense, nos referidos textos, pratica uma crítica que valoriza a obra de Clarice, chamando a atenção de estudiosos que não conseguem ver a importância de certos “temas e situações” constantes da obra da ficcionista brasileira, o que fica evidente na introdução de O mundo de Clarice Lispector (ensaio).
Verifica-se que Nunes não é o primeiro a analisar a obra de Clarice Lispector. Porém, parece ter sido, naquele momento, quem mais se preocupa com a escrita da autora, já que ele continua, por vários anos, estudando a obra dela e publicando ensaios em jornais e livros.
Por meio de estudos que vinha empreendendo desde a década de 1940, utiliza a filosofia existencialista, porque percebeu que “certos temas e situações” da Obra de Clarice Lispector poderiam “ser melhor compreendidos à luz de categorias comuns à filosofia da existência” (NUNES, p.11). Além dessa teoria, no primeiro ensaio do livro em pauta, compara a obra dela com A náusea (1938), de Sartre, justificando que Clarice Lispector é uma “extraordinária escritora”, mostrando que a obra dela, especialmente A Paixão Segundo G. H ainda não havia sido devidamente avaliada.
Então no ensaio “A náusea”, título homônimo ao do romance sartreano, analisa três textos de Lispector, atentando para “a experiência da náusea” no comportamento das principais personagens das obras em análise: Ana, protagonista da narrativa “Amor”, do livro de contos Laços de família; Martim, do romance A maçã no escuro (1961), e G. H., do romance A paixão segundo G. H. (1964), para mostrar a “concepção-do-mundo” na ficção clariceana.

Para esse estudo, Nunes retoma inicialmente a filosofia da existência de Kierkegaard, que demonstra a importância da “experiência vivida”, ou seja, da existência concreta do individuo e de sua subjetividade, que, segundo ele, vai além de um saber racionalista.
A partir do olhar filosófico em que os dramas das personagens das obras em estudo parecem espelhar os dramas humanos, Nunes observa que a ficção de Lispector insere-se no contexto da filosofia existencialista, contexto esse formado pelas “doutrinas que, muito embora diferindo nas suas conclusões, “partem da mesma intuição kierkegaardiana do caráter pré-reflexivo, individual e dramático da existência humana” e tratam de problemas como “a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, a comunicação das consciências”, alguns dos quais “ignorados” ou subestimados “pela filosofia tradicional”.
Conquanto reconheça que, na ficção clariceana, existem “afinidades marcantes com a filosofia da existência”, deixa claro que sua percepção da filosofia existencial, nas obras da escritora brasileira, não fecha para outras possibilidades de análises.
Tomando por referencial teórico as concepções de náusea, angústia e medo, enfocadas em O conceito de angústia (1844), de Kierkegaard, Ser e tempo (1927), de Heidegger, e O Ser e o nada (1943), de Sartre, bem como outros filósofos, a exemplo de Pascal, e ainda calcado no romance A náusea, de Sartre, Nunes analisa, no ensaio homônimo, as três obras referidas de Clarice Lispector, apontando as semelhanças e diferenças entre a produção da escritora brasileira e a do escritor francês. E, ao empregar essas teorias filosóficas em sua análise, traz, para a crítica literária nacional do período, um olhar diferenciado daquilo que vem sendo feito por outros críticos no Brasil.
Após fazer menção a Kierkegaard, passa a tratar da experiência da náusea, nas aludidas obras de Clarice Lispector, do ponto de vista de Sartre, cuja náusea2 é descrita como “resultando da mudança qualitativa da angústia, é a forma emocional violenta que esse sentimento assume quando arrebata o corpo e se manifesta por uma reação orgânica definida3”, ou seja, a náusea é a expressão física da angústia quando:
Sentimo-nos existindo, em confronto com a nossa própria existência, sem a familiaridade do cotidiano e a proteção das formas habituais da linguagem, sentimo-nos, ainda, que essa existência é uma irremediável contingência, ameaçada pelo Nada, [...], que nos dá a compreensão do ser (NUNES, 1966, p. 16).
2 Jean-Paul Sartre em seu livro O Ser e o nada (1943), no primeiro capítulo “A Origem da negação”, afirma que a “angústia, portanto, é a captação reflexiva da liberdade por ela mesma” (p. 84).
3 Benedito Nunes, p. 16.

Sob tal ótica, reconhecendo a lição heideggeriana de que a linguagem, na condição de casa ou morada do Ser, representa uma instância de refúgio da condição humana, Nunes aproxima a percepção sartreana de angústia das teorias de Heidegger, para mostrar a diferença entre angústia4 e medo, sentimentos descritos pelo filósofo alemão, mostrando que “a angústia é um sentimento de alcance metafísico” e, portanto, diferente do medo, pois “tem-se medo de algo definido, de um ser particular (intramundano)” e tem-se “angústia sem saber de quê“ (NUNES, 1966, p.16).
Heidegger em Ser e Tempo (1927) para discutir sobre “a questão do ser”, empregou a palavra “Dasein”, termo complexo, que Nunes traduziu para o ensaio em tela por “estar-aí”, em consonância com uma entrevista de Heidegger ao jornal Folha do Norte, de Belém, do dia 18 de dezembro de 1949, periódico em que Nunes colaborou de 1946 a 1951, intitulada A palavra de Heidegger, na qual o pensador alemão explica que a palavra “Dasein” não deve ser traduzida por existência, pois ela “exprime a realidade humana no homem. Dasein refere-se ao ser humano entre todos os seres existentes, integrado na comunidade histórica e social” (p. 3). Acrescentando ainda que a expressão “ser situado”, e não “existência”, é a mais adequada para significar a palavra “Dasein”, porque “ela exprime precisamente o enraizamento do homem na comunidade”; (...) mas esta realidade é situada no tempo e no espaço da criatura que se liga a outras criaturas e que se afirma através da angústia e do cuidado, a „Sorge‟.
A partir dessa percepção de náusea, angústia e medo, Nunes conceitua esses três sentimentos muito próximos, no entanto bastantes diferentes um do outro, para se concentrar na angústia e na náusea, conceitos que servirão de base para a análise da obra de Clarice, demonstrando que:
O mal-estar da angústia provém da insegurança de nossa condição, que é, como possibilidade originária, puro estar-aí (Dasein). Abandonado, entregue a si mesmo, livre, o homem que se angustia vê diluir-se a firmeza do mundo. O que era familiar torna-se-lhe estranho, inóspito. Sua personalidade social recua. O círculo protetor da linguagem esvazia-se, deixando lugar para o silêncio (O mundo de Clarice Lispector (1966), p. 16-17).
4 Nunes chama a atenção para o mesmo sentido de Angústia tanto na obra de Sartre quanto em Sein und Zeit. (Ser e Tempo) de Heidegger. Nos ensaios do livro O mundo de Clarice Lispector (ensaio), Nunes cita ou menciona os títulos dos livros que serviram de base teórica para seu estudo na língua original da edição.

Explica, ainda, a coincidência de sentido de angústia nas obras de Sartre e Heidegger, chamando a atenção para a obra do filósofo francês. Para o crítico brasileiro, “ela é mais minuciosa e esclarecedora5”, porque segundo esta:
É a vertigem da consciência, como ser precário, falho, não idêntico a si mesmo (Para-si), oposto ao modo de ser das coisas (Em-si), e que cria, devido à sua própria carência através das possibilidades que projeta no mundo, o sentido da existência. Originária, a liberdade dimensiona o Em-si, sob forma de “realidade”; mas o Em-si, para o qual se volta a consciência e que de certa maneira a polariza, nem com ela coincide, nem pode determiná-la. Aspirar pelo Ser é para o homem, condenado à liberdade que a sua condição ontológica impõe, “une passion inutile” (NUNES, 1966, P. 17).
Em seguida passa analisar o romance A náusea, de Jean-Paul Sartre, sugerindo que há pontos semelhantes e divergentes entre a obra da escritora brasileira e a do pensador francês, cujos protagonistas, num dado momento de suas historias, tomam consciência do mundo, da existência e, por isso, sofrem, assemelhando-se a seres humanos, porque diz Nunes:
A angústia me desnuda, ao reduzir-me àquilo que eu sou: uma consciência indigente, a quem coube a maldição e o privilégio da liberdade. Transpondo-me ao extremo de minhas possibilidades, revela-me a grandeza e a miséria do homem – grandeza em razão da liberdade, e miséria porque, tudo podendo ser-nos imputado, a nossa responsabilidade é absoluta. Vivemos, afinal, num mundo puramente humano, onde a única transcendência deriva da consciência6 (1966, p. 17).
É nessa clave que as personagens clariceanas transitam acometidas de repente de uma consciência sobre suas vidas, relembrando o passado e percebendo o presente em que vivem, ao mesmo tempo em que descobrem que os fatos corriqueiros até então não percebidos são gratuitos, contingentes e, por isso, de acordo com o crítico, tais personagens sentem náusea.
Assim, o ensaísta aproxima as três personagens clariceanas analisadas no ensaio ao personagem Roquentin, o protagonista de A náusea, de Sartre, mostrando que aquelas, a partir da tomada de consciência do mundo, das coisas que as rodeiam, em um determinado momento de suas existências, sentem medo e posteriormente passam por certo mal-estar
5 Em O dorso d tigre, de 1969, Nunes retira essa afirmação de que a “descrição que Sartre faz desse sentimento é mais minuciosa e esclarecedora que a de Heidegger.
6 Na edição do livro O mundo de Clarice Lispector (ensaio) (1966), Nunes usa a primeira pessoa do singular em seu discurso, havendo um certo egocentrismo na sensibilidade com relação ao foco de sua análise (Isso também foi percebido no discurso da obra filosófica O ser e o nada, de Sartre). Em O dorso do tigre (1969), há uma mudança para a primeira pessoa do plural nas análises dos mesmos textos. Essa mudança linguística, de certo modo, altera o sentido interpretativo, que se torna mais abrangente, porque transforma aquela sensibilidade num eu coletivo.

físico, chegando à cólera e à náusea, como é o caso de Roquentin. Esse é um historiador que chega à cidade de Bouville, com o intuito de escrever a biografia do marquês de Rollebon, mas, justamente num jardim, lugar ameno de contemplação, se depara com a raiz de uma castanheira e, segundo o crítico em apreciação, é suplantado pelo formigamento da existência, logo se desencanta com o seu trabalho com a sociedade da pequena cidade, com os homens e com a falta de sentido de sua própria vida, sentindo-se impotente diante do mundo, portanto acometido pela náusea, reconhecendo o perigo da existência, pois:
O corpo de Roquentin cede a essa corrente impetuosa do ser, no meio da qual a sua consciência apenas consegue flutuar a princípio impulsionada pelo medo, depois por um mal-estar físico, que se transforma na emoção ambígua, barroca, descrita como “estase horrível‟ e “deleite atroz”, confinando com a repugnância e a cólera (NUNES, p. 18).
As personagens de Lispector, assim como Roquentin, também se angustiam e chegam à náusea. O crítico paraense mostra que, para Ana, do conto Amor, uma dona de casa que vive tranquila com marido e filhos numa casa confortável, bastou ver um cego que mascava chicles para entrar em profunda crise, sua desagregação interior é profunda, deixa cair do seu colo as compras; o saco de tricô e os ovos se esparramam no bonde. Ela sente um mal-estar (respiração opressa, etc):
O mundo se tornava de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio a tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana agarrou-se ao banco da frente como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram” (Laços de Família, p. 27. Apud O mundo de Clarice Lispector, p. 20).
Ana desce transtornada do bonde e entra no Jardim Botânico, num ambiente colorido e ameno de fim-de-tarde, que se transforma, de súbito, num viveiro de agitadas existências. Logo, de acordo com Nunes:
principia por todos os lados o assédio das coisas, já estranhas, mobilizando forças secretas, que se derramam em ação indormida, presenças sensíveis, outrora familiares, repentinamente estendem garras ocultas, destilam sumos, elaboram volumes e carnações. São os movimentos incontroláveis porém serenos da maquina do mundo, em pleno funcionamento. Sem descontinuidade, no giro da existência proliferante, que fascina e repugna, essa máquina fabrica vida e morte. (...) “Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo e era fascinante... As árvores estavam carregadas, o mundo era rico que apodrecia“ (Laços de Família, p. 29, Apud O mundo de Clarice Lispector, p. 21).

O segundo exemplo do sentimento da náusea demonstrado pelo critico está presente na personagem Martim, de Maçã no escuro. Essa personagem, que supostamente assassinou a esposa e fugiu para uma fazenda onde passa a trabalhar, conforme o ensaísta, é uma personagem que se impõe a não pensar, mas ser. O sentimento de náusea ocorre num dos momentos decisivos de sua experiência no trabalho com os animais, a que o crítico chama de:
renovação, no caminho da conquista de si mesmo, é a descoberta e a tentativa de assimilação dos elementos sensíveis, brutos, penumbrosos, proliferantes e fortes da vida num curral de vacas, local onde Martim encontra, sob forma de vida ativa, de matéria operante, que segue curso impassível, o sórdido, o fecal (NUNES, p. 21).
Essa personagem, na apreciação do crítico paraense, fracassa no debate contra o passado que não consegue desfazer. Todavia Martim nutre uma esperança absurda:
sem relações com o crime cometido muito antes, e com as pessoas que o rodeava.(...). Próxima da quietude das coisas aceitas e vividas independentemente de confiança e temor, do Bem e do Mal, a expectativa quieta, silenciosa, que nada mais pede ao futuro e ao possível, recua para dentro de si mesma, tornando-se compreensão muda, ou entrega inevitável do Ser (O dorso do tigre, p. 99).
Essa percepção do crítico belenense é demonstrada com vários fragmentos do livro A maçã no escuro, de Clarice Lispector, do qual retiramos exemplo sobre o entendimento do mundo, que Martim vai absorvendo, chegando ao ápice de compreensão desse entendimento e de sua vida:
Caindo em êxtase diante da vida impessoal da natureza, vislumbra a conexão de sua existência com a de todo o universo, conexão a que a náusea emprestará um cunho de participação orgânica (NUNES, p. 22).
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Ali era o escuro ar de que vive uma coisa viva. E Martim estava bem cercado pelas coisas que ele entendia: as moscas desovavam. E o sentido daquilo era o sentido mais primeiro daquele homem: estava ali como se houvesse um plano que ele ignorava, mas a que uma planta se agregava com a boca e a que ele próprio correspondia sentando-se muito evidentemente na pedra – sentar-se numa pedra estava-se tornando sua atitude mais inteligível e mais ativa... (A maçã no escuro, p. 91. Apud O mundo de Clarice Lispector, p. 22).
Por último, Nunes demonstra o desencadeamento da náusea na personagem-narradora G. H, do romance Paixão segundo G. H, cujo momento de compreensão do mundo e de si mesma, segundo o crítico, ocorre quando a protagonista entra no quarto da empregada que acaba de sair do emprego e vê uma barata saindo do armário. Esse inseto muda a compreensão da existência de G. H, porque, de acordo com Nunes: Condensam-se, pouco a pouco, em torno desse inseto, sentimentos contraditórios que vão crescendo. Na apreciação de Nunes, G. H. passa da:

comum aversão das donas-de-casa por baratas, o simples nojo físico, o medo, e até o súbito interesse despertado pelo inseto caseiro, dão lugar a uma estranha coragem, misto de curiosidade e de impulso sádico-masoquista com que G. H., fechando a porta do guarda-roupa sobre o corpo tão animal, perpetra o ato decisivo (NUNES, p. 24).
Quando G. H. vê a barata esmagada, o nojo se aprofunda, a ponto de secar-lhe a boca e revirar-lhe o estômago pelo nojo violento que se transforma em náusea:
É que a mulher, então, começou verdadeiramente a ver pela primeira vez a sua vítima; e vendo-a, descobriu o ser que nela havia, a matéria organizada em cascas, antenas e olhos, matéria crua, viscosa, repelente, que escorreu, pastosa, do corpo esmagado. Mas, de imediato, através disso tudo que sentia, da náusea que a dominava, G. H. resvala para o êxtase: descobre, afinal, que ela e a barata participavam da mesma existência nua, ancestral, inumana, e possuíam a mesma identidade. (O mundo de Clarice Lispector, p. 23).
Os exemplos dados pelo crítico sobre as obras analisadas mostram que, nas obras de Clarice Lispector, é a partir de um dado momento quando as personagens se deparam com algo aparentemente corriqueiro, comum no dia-a-dia dos seres humanos, que as personagens vão despertar para o sentido da vida, como ocorre com G. H.:
Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama - era lama, e nem sequer lama já seca, mas lama ainda úmida e viva, era um lugar onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes da minha identidade (A paixão segundo G. H, p. 57. Apud O mundo de Clarice Lispector, p. 23).
Benedito Nunes, na conclusão do seu ensaio “A náusea”, observa que: Como a angustia, a náusea não tem por objeto um ser determinado. Embora desencadeada pela contemplação de uma coisa em particular, a sua causa real é o mundo, a existência. Sendo assim, mostra a diferença da “experiência da náusea” nos três textos de Clarice Lispector e na do pensador francês, constatando que essa experiência nas obras da autora brasileira sofre modificações contundentes, pois elas vão evoluindo. Em “Amor”, a náusea é a “crise que suspende a vida cotidiana da personagem, mas a lembrança dos filhos, marido, ainda tem forças para reter Ana à beira do perigo de viver (...); em A maçã no escuro, o estado nauseante associa-se ao descortínio instintivo que coloca Martim no plano reificado e orgânico da Natureza; mas em Paixão segundo G. H., há um aprofundamento da náusea que difere dos outros textos analisados, inclusive, difere da experiência da náusea sartreana, pois Sartre, de acordo com o crítico brasileiro:

não conferiu aos seus personagens uma liberdade fundamental. Justamente porque a náusea revela o Absurdo, é preciso criar o sentido que a existência não possui. Esse sentido, que deriva única e exclusivamente da liberdade, e é sustentado pelos nossos atos, impõe-se apesar da náusea e contra o Absurdo (NUNES, p. 24).
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Para Clarice Lispector a náusea não só interfere com a liberdade, como dela se apossa, chegando a destruí-la. Esse estado excepcional e passageiro transforma-se, para a romancista, numa via de acesso à existência imemorial do Ser sem nome, que as relações sociais, a cultura e o pensamento apenas recobrem sem conseguir superá-lo. Interessa-lhe o outro lado da náusea: o reverso da existência humana, ilimitado, caótico, originário (NUNES, p. 24).
Nunes demonstra em seu ensaio que a experiência da náusea sartreana, no romance de Clarice Lispector em tela, eleva-se para uma experiência mística porque:
O aprofundamento da náusea, como revelação do Ser e via Mística da união com a sua inexpressável realidade, é a nota marcante de Paixão Segundo G. H. Narra-se aí uma experiência espiritual contraditória, em que o sacrifício e o sacrilégio se confundem, a redenção significando a anulação da personalidade e o amor a entrega do Eu a potências cósmicas indiferenciadas, não-éticas, que têm um lado sóbrio e diabólico, infernal, e outro luminoso e divino (NUNES, p. 24).
Desse modo, a experiência da náusea sartreana em A paixão segundo G. H. segundo Nunes, está em consonância com as teorias da existência, mas, ao mesmo tempo, em dissonância com a visão de Sartre, haja vista o exemplo da experiência da personagem G. H. com a barata, cuja descoberta do inseto e de si mesma aponta para outro sentido do humano:
Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos. Essa revelação humilde e arrasadora de G. H, conforme Nunes poderia ser uma réplica à conhecida afirmação sartreana de que nós vivemos num mundo essencialmente humano, “où il n‟y a que des hommes” (O dorso do tigre, p. 102).
Referências bibliográficas
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
_____Ser e tempo. Parte II. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
LISPECTOR. Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
_____A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
609
_____Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998
NUNES, Benedito. O mundo de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1966.
_____O dorso do tigre. São Paulo: São Paulo: Ática, 1969.
_____Meu caminho na crítica. Revista Estudos Avançados: Rio de janeiro, 2005.
WIZNITZER, Luiz. A palavra de Heidegger. Entrevistado Heidegger. Folha do Norte, Belém, 18 de dez. 1949, Arte Suplemento Literatura, p. 1-3.

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Professor da UECE (adjunto) e do CMF (titular); especialista em literatura luso-brasileira (UFC) e mestre em literatura (UFC)

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