MISCELÂNEA
Revista de Pós-Graduação em Letras
UNESP – Campus de Assis
GRANDE SERTÃO - VEREDAS E SÃO BERNARDO - NARRATIVAS
DE UMA MODERNIIZAÇÃO EM SUSPENSÃO
Daniele dos Santos Rosa
RESUMO
Este breve estudo pretende problematizar
alguns aspectos importantes das obras de
Graciliano Ramos e Guimarães Rosa ¾
São Bernardo e Grande sertão: veredas
¾ que, inseridos em nossa história
literária, buscaram, por meio de recursos
estéticos diversos, transfigurar uma
realidade difícil de ser abarcada, tentando
identificar o que essas obras têm a nos
dizer enquanto narração de um país que
ainda está em busca de encontrar seu
próprio caminho no mundo. Pretende-se,
então, refletir alguns aspectos dessa
relação entre literatura e nação,
principalmente como a literatura pode dar
a ver, por meio de sua transfiguração da
realidade, os mecanismos que regem a
sociedade, em especial as forças que se
estabeleceram nas diversas fases de nosso
processo de modernização.
Daniele dos Santos Rosa
Miscelânea, Assis, vol.5, dez.2008/maio 2009 57
Graciliano Ramos e Guimarães Rosa são dois importantes autores
da literatura brasileira, pois além de transfigurarem momentos
importantes e decisivos do país em suas obras, ainda são responsáveis por inovar
o modelo de representação da nação. Suas obras representam o que há de melhor
na produção narrativa nacional. Dessa forma, um estudo que tem por intuito
estudá-los se torna relevante para a crítica literária, porque assim será possível
contribuir para o conhecimento das peculiaridades de cada artista, além de
possibilitar um outro “olhar” para o Brasil, em especial em períodos tão relevantes
como os anos de 1930 e 1950. Considerando a vasta obra dos dois escritores e
buscando um aprofundamento maior de análise, este artigo faz parte de um estudo
comparativo maior entre os dois romances São Bernardo e Grande sertão: veredas.
Aqui se buscará evidenciar as reflexões acerca das obras enquanto narrativas de
uma modernização peculiar de nosso país.
Essas obras, segundo Antonio Candido, encontram-se em períodos
diferentes do sistema literário nacional, implicando, ainda, formas diferenciadas de
produção estilística, de percepção de mundo e de apropriação da forma objetiva.
Assim, a obra de Graciliano encontra-se em um período no qual ocorre uma
“tomada de consciência ideológica de intelectuais e artistas numa radicalização que
antes era quase inexistente. Os anos 30 foram de engajamento político, religioso e
social no campo da cultura [...] de inserção ideológica” (CANDIDO, 2000, p. 182).
Dessa forma, essa “consciência” se realiza por uma percepção que também se dá
em âmbito político e social: volta-se o olhar narrativo, e por isso estético, para o
Nordeste, para a outra realidade do país que está além dos centros urbanos.
Contudo esse olhar não é mais aquele vislumbre pitoresco, mas algo desconfiado,
cujas preocupações principais estavam em âmbito das práticas sociais e ideológicas,
não mais com intuito de enaltecer as peculiaridades do país. A essa nova forma de
percepção da nação, Candido nomeou de “consciência catastrófica do atraso”, pois
possuía uma “perspectiva [...] pessimista quanto ao presente e problemática quanto
ao futuro [...]. Desprovido de euforia [...] leva[ndo] à decisão de lutar” (CANDIDO,
2000b, p. 142), cuja implicação estética principal é a ausência da necessidade
urgente de ruptura da linguagem, como ocorreu na primeira fase do Modernismo,
bem como a ênfase em questionamentos da função da literatura, sobre o papel do
escritor perante à arte e à sociedade e a relação entre ideologia e arte.
Já a obra de Guimarães Rosa, dentro desse processo da tradição literária,
assume uma nova perspectiva a partir do que se realizou na década de 1930. Já
não se encontra mais uma posição ideológica de luta seja na forma literária, seja
na posição do escritor enquanto intelectual. No entanto, a percepção estética do
subdesenvolvimento se agrava, atuando como “consciência dilacerada” (CANDIDO,
2000b, p. 162) de um atraso que não é mais circunstancial, é sistêmico, cujas
ações ou tentativas de mudança, nos anos de 1930, não conseguiram modificar.
Assim, há uma busca por elementos não-realistas, como o monólogo interior, a
elipse, bem como um retorno do mito, principalmente na obra de Rosa, mas tratase
de um retorno ao relato fantástico de tradição oral deslocado da realidade,
tornando-se “um modo de consciência histórico ou das coisas”, resultando em uma
passagem do local em direção ao geral, ou seja, “passagem da região para o
destino humano” (SCHWARZ, 1981, p. 44).
Tendo em vista esse ponto central de diferenciação, a leitura dos
romances implica também certas semelhanças que devem ser ressaltadas, como,
primeiramente, o tema principal baseado na contradição entre arcaico e o
moderno, tendo o resgate da oralidade como chave estilística. Essa contradição se
dá devido ao país estar inserido em um sistema mundo cujo interesse consiste em
absorver essas estruturas avançadas, mas seu atraso é parte de sua identidade e
sua posição nesse sistema é arcaica, pois esse atraso faz parte da nossa história
contemporânea, incluídos no sistema mundo do capital e de seus avanços e recuos.
Assim, essas obras participam da tradição literária nacional e do sistema
literário ao permanecerem como tema fundamental comum a contradição entre o
arcaico e o moderno, permanecendo a dialética entre localismo e cosmopolitismo
como um problema central da Literatura brasileira. Outra especificidade que os
aproxima, apesar da distância temporal, é a classificação ¾ pela crítica literária ¾
como regionalistas. Quanto aos aspectos estruturais, as principais semelhanças
que podem ser apresentadas são: a narração feita em primeira pessoa por um
narrador-personagem em um tempo ulterior, cuja característica principal é a
narração em abismo, em que se realiza o relato de um exame de consciência feito
na velhice, cujo intuito é compreender os acontecimentos da vida. Esses dois
romances ainda se ambientalizam no sertão, o de Graciliano no sertão nordestino
e o de Rosa no sertão mineiro, os quais, apesar de possuírem características
diferentes, ou até opostas, aproximam-se pelo distanciamento ao meio urbano,
tratados como ambientes rústicos e arcaicos do país. Outra importante
característica em comum é o problema da modernização sendo tratado tanto em
âmbito de enredo como no próprio processo de realização da obra, pois esses dois
romances são produtos também de fases de modernização do país.
Por meio do enredo de São Bernardo (modernização rápida do Nordeste
brasileiro demonstrado pelos esforços de Paulo Honório em adquirir a fazenda) e
de Grande sertão: veredas (tentativa de finalizar as ações dos jagunços por meio
da própria jagunçagem, pacto com o Diabo cujo intuito é vencer o inimigo
Hermógenes, mas também ascender de classe) percebe-se que se trata de dois
processos de modernização diferenciados: o primeiro transfigura “o capitalismo
brasileiro em seus primórdios” (DACANAL, 1982, p. 20), em que se promoveu a
modernização agrícola em detrimento da transformação do homem rural em
trabalhador rural, possuidor de direitos, permanecendo como lugar de exploração
e do poder restrito a poucos, em que Paulo Honório é o “representante da
modernidade que entra no sertão brasileiro, é o emblema complexo e contraditório
do capitalismo nascente” (LAFETÁ, 2004. p. 81) e sua falência enquanto
empreendedor e enquanto ser humano pode mostrar também a falência de um
projeto que não dá certo no país. Já no segundo, pode-se perceber como se narra
a tentativa de urbanização das regiões atrasadas do país, na qual o próprio sertão
e seu produto, os jagunços, não fazem parte, devem ser “eliminados” para que
assim se chegue à modernização, em que a narrativa de Riobaldo pode ser uma
forma de resgate de algo que não existe mais ou que está fadado ao fim. Assim, é
possível encontrar os resíduos dessa modernização, restos que não conseguem se
efetivarem na modernização do país.
É importante notar como esse problema da modernização pode ser
evidenciado pelo conflito maior que há na literatura brasileira entre o
cosmopolitismo e o localismo já mencionado. A modernização já é uma tentativa
de universalização. No entanto, é possível perceber que, devido às condições
próprias de país periférico, essa universalização não ocorre de forma efetiva, pois a
modernização é restrita a certos grupos, permitindo que grande parte da
população torne-se alheia às transformações. Essa parte então excluída pode ser
“assimilada” como representação da verdadeira identidade nacional, por meio de
um localismo exacerbado, recebendo assim um tratamento pitoresco, afastandoa
ainda mais da modernização. Ou, então, é inteiramente esquecida, sendo
apenas incluída nos subprodutos dessa modernização, como na cultura de
massa, por exemplo, travestida de avanço e integração.
Dessa forma, a aproximação e o distanciamento que parece se realizar de
uma forma dialética entre esses romances deve ser investigada. É necessário se
perceber dentro do sistema literário o que permaneceu e o que se alterou na
forma estilística e na forma de transfiguração da forma objetiva, buscado assim
uma percepção melhor tanto da Literatura quando das relações sociais do país.
Assim, é preciso verificar como os romances mencionados, ao tratarem da
modernização por meio da tentativa de resgate de um modo ainda arcaico de
relação social e de linguagem, podem demonstrar como essa dialética entre o local
e o universal se dá na sociedade brasileira, mostrando como ainda coexistem
esses dois pólos tanto na transfiguração narrativa do país por meio das trajetórias
de Paulo Honório e Riobaldo, bem como na própria fatura textual, seja na negação
da linguagem enquanto instituição, seja na tentativa de junção de linguagens
culturais diferenciadas. Para tanto, se buscará perceber alguns aspectos da
importante relação entre a forma literária e o processo social a partir das relações
dos narradores, Paulo Honório e Riobaldo, com seus personagens, inseridos na
narrativa em momentos de modernização do país.
São Bernardo, publicado em 1934, é, como afirma Faria (2006, p. 8), “a
narrativa da modernização”, ou seja, relata-se a tentativa de modernização do
Nordeste, em um período em que a produção dessa região tinha lugar no
mercado externo, em que a necessidade de maquinários, de construção de
estradas e de benfeitorias “modernas” nos latifúndios fazia-se necessária. Paulo
Honório é, dessa forma, um empreendedor, é aquele que buscará o avanço da
região, tornando-se um latifundiário: senhor de terras e de homens. Tendo
trabalhado no eito da fazenda São Bernardo, resolve possuí-la, para isso aprende
aritmética para não ser usurpado em seus primeiros empréstimos, torna-se um
negociador de diversos artigos pelo sertão e assume-se como “capitalista”
(RAMOS, 2006, p. 25) de profissão. Retorna a Alagoas, torna-se dono da fazenda
e como seu objetivo era o progresso na fazenda, fez que tudo o que ali se
produzisse ou construísse fosse possibilidade de acumulação de capital: “a escola
seria um capital. Os alicerces da igreja eram também capital”, enfim, Paulo
Honório torna-se proprietário, um agente do processo modernizador em voga no
país, o qual buscava a superação do atraso por meio da modernização nas
relações produtivas e comerciais.
Esse projeto modernizatório demonstra todo um processo histórico ao
qual passa o país no sentido de se adequar conforme as determinações do
sistema mundo. Assim, percebe-se que desde a década de 1920 e principalmente
em 1930 há um esgotamento das potencialidades econômicas baseadas quase
que exclusivamente na agricultura e há um empenho de modernização advindo
com o investimento nas fábricas e na urbanização das cidades, que se prolonga e
se intensifica nos anos de 1950, como a política desenvolvimentista. No entanto, é
importante perceber que desde a Primeira República foi preciso consolidar um tipo
de organização de poder baseado na organização liberal, mas tendo em sua base
vários grupos, com diversos interesses e concepções, que disputavam o domínio
do país, agora sobre um possível ideal democrático. Dessa forma, a consolidação
dessa forma de poder contribuiu para a concretização de uma autonomia aos
Estados, baseada no poder das diversas oligarquias e de seus interesses para seu
Estado e suas relações com o poder central.
Diante disso, a década de 1950, momento de produção de Grande sertão:
veredas, caracteriza-se pelo processo desenvolvimentista do país, promovido por
Juscelino Kubitschek, cujo intuito era permitir o país inserir-se na nova fase de
industrialização e desenvolvimento tecnológico vivido pelo mundo capitalista,
tendo como base o desejo de integrar o interior do país ao seu centro, ou seja,
em um âmbito maior, integrar o Brasil ao mundo, nossa tradição arcaica ao
moderno. No entanto, a leitura do romance indica um aspecto muito curioso, pois
a narrativa retorna a um tempo outrora, volta-se a uma fase anterior da
modernização, ao período inicial de investimento na industrialização e na
urbanização, momento este em que há uma tentativa de adequação do país as
novas formas produtivas e comerciais do sistema mundo, centrados no Centro-Sul
do país, momento este muito característico, também, pela tentativa de mudança
social buscada pela Revolução de 1930 e de várias mobilizações sociais suscitadas,
principalmente, pela possibilidade de mudança trazida pela Revolução de 1917.
Assim, a tentativa de modernização agrária do Nordeste, sua suspensão
devido ao interesse atual na urbanização e industrialização de centros urbanos, o
vínculo entre a nascente burguesia industrial e os latifundiários do Centro-Sul,
também será tratada em Grande sertão: veredas, no entanto, a partir de uma
perspectiva diferenciada, na qual esse projeto de modernização pode ser visto por
outro ângulo, mas que, juntamente com São Bernardo, permitirá uma percepção
mais completa desse importante processo. É importante salientar que tanto no
romance de Graciliano Ramos como no romance de Guimarães Rosa o processo
estético de transfiguração da realidade, ou seja, transformar em forma literária a
forma objetiva, se dá por meio de um refinamento do documento em que ao
superá-lo como descrição da realidade assume-se como ficção e fortalecem sua
força sugestiva, como bem salienta Candido ao tratar de Guimarães Rosa, cuja
reflexão pode ser muito bem estendida à Graciliano Ramos:
Isto significa que Guimarães Rosa tomou um tipo humano
tradicional em nossa ficção e, desbastando os seus elementos
contingentes, transportou-o, além do documento, até a esfera onde
os tipos literários passam a representar os problemas comuns da
nossa humanidade, desprendendo-se do molde histórico e social de
que partiram (CANDIDO, 2004, p. 120).
Grande sertão: veredas trata, então, da abertura do sertão a essa
modernização, cujo desejo de finalizar as ações dos jagunços é a tentativa de
superação de antigas estruturas políticas por novos modelos de relação
baseadas nas tentativas do país de se incluir na modernização do sistema
mundo. É, neste período, que a literatura se apropria ainda mais dos
ingredientes regionais e particulares do país a fim de transfigurá-lo e torná-lo
universal. Por outro lado, a perspectiva de São Bernardo é de quem atua nesse
processo, mas seu beneficiamento não é pleno devido às próprias regras e
conseqüências da expansão do capital.
Como se repete inúmeras vezes nos capítulos iniciais de São Bernardo,
Paulo Honório torna-se um capitalista, assume essa posição no projeto de
modernização do país, no entanto, verifica-se que as relações sociais, em especial
as trabalhistas, não sofrem também uma tentativa de mudança, de modernização,
constituindo, então, uma modernidade em suspensão, sem ocorrência plena e
efetiva. Na verdade, as formas de divisão do trabalho permanecem, os antigos
sistemas patriarcais e clientelistas ainda regem e comandam as relações tanto de
Paulo Honório com Marciano, Maria das Dores e outros empregados, até com
aqueles que assumem a posição de agregados, recebendo favores e servindo ao
protagonista, como Seu Ribeiro (guarda-livros), Costa Brito (jornalista) e Luís
Padilha, chamado para ser professor na fazenda.
No Capítulo VI, no qual se narra a trajetória de Seu Ribeiro, é possível
identificar dois importantes aspectos desse projeto de modernização social, como
a imposição de novas tecnologias e a manutenção das relações sociais. Seu
Ribeiro, considerado “major” em seu povoado, era quem conduzia a
administração local, resolvia as questões litigiosas, enquanto sua mulher cuidava
das questões religiosas, ou seja, “major decidia, ninguém apelava. A decisão do
major era um prego”. No entanto, esse povoado começa a sofrer modificações,
torna-se vila, constrói-se a estrada de ferro e, com isso, chegam à cidade os
chefes políticos e as máquinas. Assim, todo o poder de decisão e o domínio do
Seu Ribeiro sobre a pequena população começa a definhar, a sua propriedade,
cuja produção era obtida pelo trabalho comunitário, descrito pelo narrador como
praticada por “todo o mundo [...] porque todo mundo era do major”, acaba por
decair e parar sua produção.
É importante notar como esse capítulo é narrado como uma fábula, como
uma estória acontecida em um tempo outro, em que tudo pareceria perfeitamente
encaixado, sem problemas ou conflitos, como mostra a descrição irônica sobre as
relações de trabalho na propriedade de Seu Ribeiro: “e os pretos não sabiam que
eram pretos, e os brancos não sabiam que eram brancos”, ou seja, evidencia-se
uma igualdade de direitos que na verdade não existia já que todos dependiam do
major e eram por ele explorados. Assim, essa mudança estrutural que sofre o
povoado de Seu Ribeiro e sua decadência pode ser identificada também como um
índice de como se dará a trajetória modernizadora de Paulo Honório, já que para
o protagonista o problema da decadência de Seu Ribeiro foi sua falta de
percepção da mudança e sua inclusão nesse novo processo, pois para ele era
preciso que o major andasse mais depressa.
No entanto, percebe-se que o problema não está concentrado somente
nas atitudes ou ausência delas, mas sim na própria estrutura dos processos
modernizadores do país que, ao apropriar-se de novas técnicas, insere-as sem,
contudo, transformar as estruturas sociais. Seu Ribeiro, como outros latifundiários,
faliram no momento em que se investiu numa forma de trabalho diferenciada da
escravidão e em maquinários, por não se tornarem capitalistas como Paulo
Honório, mas o problema maior disso é perceber como a base de trabalho
exploratório se manteve e se manterá mesmo, com poucas alterações, depois da
consolidação do processo capitalista em nosso país.
Assim, o capitalismo brasileiro não contou diretamente com uma ideologia
utópica burguesa que levasse a tentativas mais radicais e mais práticas, como se
deu na Europa, que mesmo ao demonstrar sua impossibilidade, acabou por obter
alguns resultados. No Brasil, a evolução do capitalismo parece se processar
contraditoriamente e também dependente da manutenção de estruturas précapitalistas,
no sentido em que se tornou muitas vezes um estímulo para a
manutenção das velhas condições sociais pertencentes a modos de produção
anteriores e estagnados. Isso se dá porque, como afirma Faria,
A inserção do país no processo modernizador, no entanto, previa
a manutenção de estruturas arcaicas no país, como manutenção
da mão de obra barata para atender à imposição de vantagens
comerciais para os grandes centros capitalistas. Esta era a
condição sine quan non para a participação dos países latinoamericanos
no capitalismo mundial e que introduziu
definitivamente nestes países a vigência de uma temporalidade
dupla ¾ arcaico-moderna ¾ no país (FARIA, 2006, p. 44).
Essa ausência de rupturas efetivas no sistema social do país em oposição
a uma efetiva inserção e modernização de técnicas industriais insere no país essa
dupla temporalidade, que como afirma Bastos (2005, p. 133), provêm da própria
condição de formação a partir do par local e universal, cuja enunciação se dá pela
contradição dialética entre arcaico e moderno, “atraso/progresso,
periferia/centro”. É importante perceber como essa inicial oposição se estabelece
de forma dialética, pois convivem ao mesmo tempo em que se contrapõem, já
que é essa condição que possibilita a inserção do país no sistema mundo
moderno. Assim, a condição para a “modernização” do país, atendendo à
demanda das elites nacionais e estrangeiras, apoiava-se na própria manutenção
das formas arcaicas de relação social e trabalhista, fixando no país um movimento
confuso entre avanço e imobilismo, coexistindo as formas mais requintadas de
produção material ao lado dos processos mais cruéis de trabalho.
Essa mesma contradição evidencia-se em Grande sertão: veredas pela
própria existência do sertão e, principalmente pelo formato que as relações sociais
ali se estabelecem. A afirmação de Selorico Mendes, pai de Riobaldo, já evidencia
esse processo, pois para ele o sertão se constituía como “Política! Tudo política, e
potentes chefias” (ROSA, 2006, p. 104), em que a precariedade do interesse e
sentido público se contrapõe ao próprio interesse liberal das imposições políticas
liberais da República, em que a representação política e o reconhecimento social
se estabeleciam de “ponderadas maneiras” no sentido em que se fundamentavam
a partir de sua ligação com a “linhagem de família”.
Nesse sentido, a partir de uma política estatal liberal, o que se tinha eram
a coexistência e a convivência de um patriarcalismo baseado na propriedade
privada, nas relações arcaicas de domínio de terra e agregados, ao mesmo tempo
em que o acúmulo de capital, enquanto perspectiva moderna, bem como a
necessidade e interesse na modernização se salientam profundamente, tanto na
perspectiva de seu Habão que, conforme Riobaldo, desejava “reduzir tudo a
conteúdo”, pois seu interesse não estava voltado às lutas entre os jagunços mas
em transformar tudo e todos em trabalho e acumulação para seu benefício
próprio, já que desejava “Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a
gente pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Até
enjoei [...] Mas a natureza dele queria, precisava de todos como escravos” (ROSA, 2006,
p. 388).
Assim, para Bolle, o ponto central da narrativa de Guimarães Rosa em
Grande sertão: veredas, o possível pacto de Riobaldo nas Veredas-Mortas, “é uma
representação criptografada da modernização do Brasil”, pois demonstra o quanto
esse processo se deu, e parece continuar, de forma “contraditória e perversa”
(BOLLE, 2004, p. 148.). Para o autor, essa modernização baseia-se,
principalmente, em um projeto político estabelecido como resposta às demandas
externas, o qual se fundamenta na aliança entre o campo e a cidade, tendo por
objetivo a “abertura do sertão à modernização, superação das estruturas políticas
baseadas no crime e na violência, transformação dos padrões de gosto e
mentalidade”, já que esse pacto entre classes, de base ambígua, se dá entre os
latifundiários e a burguesia industrial nascente, conforme indicado anteriormente.
Nesse sentido, verifica-se que as lutas na parte inicial do romance, cujo objetivo
de seu principal chefe, Zé Bebelo, era “sair pelo Estado acima, em comando de
grande guerra. O fim de tudo [...] romper em peito de bando em bando [...]
liquidar com os jagunços [...] ser deputado”, é uma tentativa de “modernizar o
sertão”, que vem desde a campanha de Canudos, tratada por Euclides da Cunha
em Os Sertões, que demonstra a principal característica do país: a contradição
entre o arcaico e o moderno.
Essa contradição mostra-se latente em todo o romance. Riobaldo ao
buscar definir o que é o sertão sempre o evoca como um espaço sem ordem, sem
lei, “é o sem-lugar que dobra sempre mais para adiante, territórios”; "Sertão, é
isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo", ou seja, é o lugar que está longe do
meio urbano e, por isso, torna-se seu avesso, local onde as pessoas carecem de
princípios civis, local aonde a modernização não chega, ou melhor, tem de ser
destruído ou esquecido, para que essa ilusão modernizadora se concretize. Nesse
sentido, verifica-se que a narrativa de Grande sertão: veredas é, em si, a
transfiguração da sociedade dilacerada entre classes sociais que estão separadas
social e economicamente, cuja tentativa de modernização parece aprofundar
essas diferenças, em que o que se demonstra não é um avanço social no país,
mas a sua deteriorização, explicitada pelas ruínas que esse processo não abarcou,
como elucida Starling, o romance de Rosa é a:
Toponímia de ruínas, fragmentos, resíduos de tudo o que o Brasil
modernizado não consegue mais aproveitar e descarta por
improdutivo, supérfluo, inútil: a massa compacta de vaqueiros,
jagunços, tropeiros, garimpeiros, romeiros, [...] sem teto, sem
terra, sem coragem, sem direitos, sem futuro e sem existência
política (STARLING, 1999, p. 16).
Ou seja, a narrativa de Riobaldo traz, transfigurada, a própria posição do
país suspenso entre o desejo universalista de inserção no sistema-mundo, sempre
constante em nossa formação histórica, e nosso particularismo manifestado seja
na decadência na produção e evolução de uma região como o Nordeste, devido à
mudança de rumo do capital nacional e internacional, seja na exclusão de parte
da população avessa ao progresso, pois esses dois processos ligam-se
intimamente pela própria condição de incompletude do país, em que o avanço
convive dialeticamente com o retrocesso, em que coexistem a miséria e a
abundância, em que demonstra seu principal aspecto: a barbárie não é o oposto
da civilização, mas sim sua condição de existência, seu avesso contraditório e
dialético.
Um dos personagens extremamente característicos desse processo de
tentativa de modernização do sertão e de suas conseqüências é o jagunço Zé
Bebelo. Seu diferencial dos outros chefes já aparece no início da narrativa: decide
aprender a ler e escrever, tendo o jovem Riobaldo como professor. Assim,
assumindo essa nova condição de semi-letrado no sertão, aquele que é
“inteligente e valente”, assume também a posição de possivelmente ligado ao
governo e resolve sair pelo sertão a fim de acabar com a jagunçagem por meio da
própria luta entre jagunços. Seu intuito, no entanto, não se restringe à luta, mas é
tornar-se deputado após a vitória e, assim: “estável que abolisse o jaguncismo
[...] então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas,
remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas”.
Para isso, sua luta se baseia nas armas, nos homens sob seus mandos, como
inicialmente Riobaldo, e em seus discursos a “serviço da pátria”, como o próprio
recomenda a Riobaldo a “falar muito nacional!”. É muito interessante perceber
como seus discursos encaixam tanto em seu momento histórico, a República
Velha, como se adequou ao período da década de 1950, que é o discurso
ideológico nacionalista que, segundo Starling (2006), acompanha a República
desde sua implantação no Brasil.
Enquanto em São Bernardo é o protagonista-narrador que promove a
modernização, em Grande sertão: veredas o processo modernizador é proposto
por um personagem, Zé Bebelo, que percebe o sertão como um passado a ser
superado, pois
seu próprio projeto político, de natureza reformista e critérios
fortemente racionalizadores, alimentado cotidianamente pelo
propósito de tomar posse do sertão e inscrever em sua superfície
um novo corpo coletivo, necessariamente popular, comum,
centralizador, homogêneo e totalizante ¾ o projeto de construção
de um “sertão nacional”, como ele sempre fez questão de afirmar.
(STARLING, 1999, p. 139)
Assim, a trajetória de Zé Bebelo de ascensão a chefe de jagunços e sua
derrota frente à impossibilidade de modernização do sertão transfigura em todo o
romance a tentativa de desenvolver seu projeto político de se tornar Deputado e
assim “transformar aquele Sertão inteiro do interior, com benfeitorias, para um
bom Governo, para esse ô-Brasil”, muitas vezes indo de encontro às vontades e
determinações de outros chefes, como até mesmo a de Joca Ramiro, que
desejavam a manutenção das estruturas que formação as relações sociais no
sertão, sem a interferência totalizadora governamental.1 Tal projeto demonstravase
como uma resposta a essa dupla temporalidade que se estabelecia no sertão e
poderia ser identificada pela diferença entre as duas margens do Rio São
Francisco, em que uma representava o arcaico, a imobilidade e o vazio dos Gerais,
enquanto a outra destinava-se a ser o acesso ao moderno, a possibilidade de
horizonte e de progresso. Um progresso que, porém, não era visto sempre com
bons olhos já que Riobaldo se espantava com as tentativas modernizadoras de
certas cidadezinhas que, à troca constante de nomes já enunciava em si a
impossibilidade de um progresso pleno.
Nesse sentido, assim como as referências feitas ao período de formação
da Revolução de 1930 são bem evidentes no romance, aspectos bem peculiares
da então chamada Revolução democrática iniciada com a implantação do Estado
Novo e fortalecida, principalmente, pela política baseada no populismo
nacionalista de Juscelino Kubitschek está presente, principalmente, na
caracterização das ações de Zé Bebelo. Assim, essa própria característica
contraditória da ação desse personagem como ser político e jagunço, desejar
combater os desmandos dos jagunços por meio de uma guerra entre jagunços, é
similar ao próprio antagonismo trazido pela prática do populismo que, como
elucida Bolle: “o populismo é um sistema de antagonismos. Como política de
aliança de classes, é uma política de aliança de contrários” (BOLLE, 2004, p. 359).
1 Starling propõe uma comparação bem detalhada entre os interesses e propostas políticas dos
principais chefes, desde Medeiro Vaz e de sua imposição de poder e formas de comportamento
até as mudanças radicais tentadas por Zé Bebelo na perspectiva de organização social e política
do Sertão. Ver: STARLING, H. M. M. Lembranças do Brasil ¾ teoria política, história e ficção em
Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Renavan; IUPERJ; UCAM, 1999.
Outro aspecto dessa figuração feita por Guimarães Rosa diz respeito aos
próprios discursos de Zé Bebelo. Sua própria tentativa de modernizar o sertão por
meio de palavras e do incitamento aos elementos nacionais é característica do
período nacional-desenvolvimentista do projeto de JK, assim como é muito
revelador o discurso feito pelo chefe dos jagunços em um local chamado
“município de Brasília”, cujo objetivo era novamente “falar muito nacional”,
evidenciado bem como a construção da nova capital do Brasil, ligando o interior
ao litoral, era uma promessa de que assim o país se modernizaria e promoveria “a
superação do estado de subdesenvolvimento da nação” (BOLLE, 2004, p. 363),
conforme o próprio candidato a futuro deputado anunciou: “Zé Bebelo elogiou a
lei, deu viva ao governo, para perto futuro prometeu muita coisa republicana”.
No entanto, a leitura do romance demonstra como o intuito de Zé Bebelo
mostra-se frágil, sem consistência, como pode ser visto na própria reação de
Riobaldo que não acredita em suas promessas e vê em seu antigo aluno alguém
que apenas “fala”, cujas intenções parecem não corresponder aos discursos e
afirmações que já trazem em si a impossibilidade de concretude: “começava por
aí, durava tempo, crescendo na fraseação, o muito instruído no jornal. Ia me
enjoando. Porque completava sempre a mesma coisa.”. Nesse sentido, Zé Bebelo
é acusado, em seu julgamento quando preso pelo grupo de Joca Ramiro, de
“desnortear”, ou seja, de tentar tira do “norte”, do sertão, suas características
peculiares, ou melhor, compactua com o desejo governamental de dar fim ao
sertão para então construir cidades urbanizadas e modernas.
No entanto, assim como o destino do personagem é perder-se no sertão,
desistir da chefia, assim também o projeto modernizador não se concretiza, se
perde em suas promessas, pois o que realiza é um distanciamento maior entre o
local arcaico e suas populações desprivilegiadas e uma minoria que se moderniza
ao passo das demandas externas. Até a situação final de Riobaldo como
latifundiário e dos outros jagunços que sobrevivem em estrema pobreza e
mendigação, ao final da narrativa, demonstra a não concretização dessas
promessas. Na verdade, esse fato é narrado bem no início da obra, mostrado
como um indício de que todo esse processo modernizador realmente não mudaria
a situação da população do sertão, seriam promessas em suspensão, cujas
estruturas sociais se manteriam.
Nesse sentido, diferentemente de São Bernardo em que se evidencia a
decadência de um latifundiário diante do processo modernizador que exclui boa
parte da população e, sendo perverso em si, acaba por transformar seu agente em
vítima também, em Grande sertão: veredas não há a decadência de Riobaldo, por
exemplo, que como filho de latifundiário, o senhor Selorico Mendes, acaba por
receber de herança terras tornando-se senhor de “gados e homens”, mostrando-se
em uma posição tranqüila, cujos moradores, ex-jagunços e agora seus subalternos
trabalhadores rurais, o protegem, como antes acontecia com seu pai, mas ao
mesmo tempo evidencia que o projeto de Zé Bebelo se desfaz e este se perde no
sertão.
Assim, verifica-se nestes romances um processo modernizador que se
impõe ao país, mas que na verdade não se altera as estruturas sociais. As lutas de
Riobaldo e Diadorim contra Hermógenes talvez tenham dado fim aos desmandos
da jagunçagem da região, no entanto, a estrutura social do latifúndio e a
exploração do trabalho permanecem, não há nenhuma tentativa de mudança nas
condições subumanas de vida dos catrumanos, nem mesmo nos discursos de Zé
Bebelo. A própria presença dos catrumanos na narrativa é de grande importância.
Eles se contrapõem não só ao grupo de jagunços, mas àquilo que Riobaldo
posteriormente se tornará. Se o fim do poderio dos jagunços permitiu um avanço
ao sertão, uma modernização como clamava Zé Bebelo, nada disso foi capaz de
alterar a situação seja dos catrumanos, seja do resto da população.
Dessa maneira, esses dois romances acabam por transfigurar todo um
período de grande importância para o país, momento este de consolidação da
República e de tentativa de implantação no país de suas promessas liberais e
modernizadoras. No entanto, mostram que o país está sempre “correndo” atrás de
um prejuízo que se revela em sua arcaidade e precariedade social, cujo objetivo de
tornar-se uma nação verdadeiramente livre e soberana, uma nação não apenas
com posição privilegiada no sistema mundo, mas um avanço que permitisse a
inserção das camadas sempre desprivilegiadas, fica sempre em suspenso. Por isso,
perceber que nosso atraso é sistêmico e não casual ou momentâneo e também
perceber que um projeto de modernização do país ligado aos interesses externos
que não somasse forças com uma tentativa de mudança social ¾ como fizeram
esses escritores ¾ é evidenciar sua própria falha. Isso demonstra que essas ações
somente farão com que este atraso se evidencie ainda mais, mostrando que essa
situação de pobreza não é só um problema a ser resolvido pelo processo
modernizador, mas trata-se do avesso não só das elites e das cidades
desenvolvidas do país, mas mostra o Brasil também como o avesso de todo um
projeto de desenvolvimento mundial, conforme é possível ver nas narrativas
desses dois importantes autores.
Portanto, o reconhecimento da posição do país no sistema mundo que a
literatura disponibiliza é de grande importância para qualquer tentativa de
mudança nas relações sociais e políticas. Assim, o conflito que se estabelece entre
os dados locais, a particularidade do país, e a forma ideológica de percepção e
relato do mundo, importada pelos intelectuais, não é somente a base da
estruturação literária, mas evidencia também o nosso principal dilema enquanto
país. Em resposta a isso, buscar compreender que respostas Graciliano e
Guimarães deram a esse conflito ¾ em especial como suas literaturas
equacionaram o problema da modernização tardia, seja pelo retorno ao passado,
ao mítico, a uma linguagem regional ou à criação de uma nova linguagem, seja
por falar do sertão no momento em que esta região está fadada ao fim, em que
perde sua importância e valor para as cidades e para a tentativa, a todo custo, de
modernização e urbanização do país, como e por que falar de um passado que não
passou, que é presente e realidade ¾, isto é, o que São Bernardo e Grande
sertão: veredas têm a nos dizer enquanto narração de um país que ainda está em
busca de encontrar seu próprio caminho no mundo.
Daniele dos Santos Rosa
Miscelânea, Assis, vol.5, dez.2008/maio 2009
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