quarta-feira, 27 de junho de 2012

Clarice Lispector



BENEDITO NUNES: RELAÇÕES DA OBRA DE CLARICE LISPECTOR COM TEORIAS DE SER E TEMPO DE HEIDEGGER
Maria de Fatima do NASCIMENTO
RESUMO: Benedito Nunes (1929-2011) começa o trabalho de crítica literária nos jornais e periódicos de Belém do Pará, como colaborador do Suplemento Literário “Arte Suplemento Literatura”, do jornal Folha do Norte, de 1946 a 1951, posteriormente continua atuando na crítica literária, divulgada em revistas, jornais literários nacionais e em livros, como: O Mundo de Clarice Lispector (1966) e O Dorso do Tigre (1969). Neste trabalho, faz-se um recorte da segunda parte da Tese de Doutorado em andamento Benedito Nunes e a moderna crítica literária brasileira (1946-1989), em que serão apresentados aspectos críticos de “A náusea”, ensaio que, ao lado de mais quatro: “A experiência mística de G.H”; “A estrutura dos personagens”; “A existência absurda” e “Linguagem e silêncio”, integrou o livro inicial de crítica literária de Benedito Nunes, O mundo de Clarice Lispector (ensaio), no qual ele relaciona a produção dessa autora com as teorias desenvolvidas em Ser e tempo, de Martin Heidegger.
Palavras-chave: Benedito Nunes, Crítica literária, Romance brasileiro, Filosofia.
A Tese de Doutorado em andamento Benedito Nunes e a moderna crítica literária brasileira (1946-1989) tem como proposta a sistematização de estudos sobre o crítico e pensador Benedito Nunes no período de 1946 a 1989. Os procedimentos metodológicos centraram-se em dois eixos: a) um corte temático representado pelo estudo do acervo produzido por Nunes e publicado em periódicos local e nacional (1946 - 1960); b) estudo do conjunto de sua obra crítica publicada sobre literatura, a saber: O mundo de Clarice Lispector (1966), O dorso do tigre (1969), João Cabral de Melo Neto (1971), Leitura de Clarice Lispector (1973), Oswald canibal (1978), O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector (1989). Além disso, recorreu-se a obras filosóficas de Martin Heidegger, como Ser e tempo (1927), para entender a relação de Benedito Nunes com a filosofia heideggeriana e as correntes hegemônicas da produção crítica brasileira da segunda metade do século XX. Também agregou-se, a esta investigação, a recuperação de acervos publicados em jornais e revistas, sobretudo em Belém do Pará, caracterizando as primeiras incursões críticas de Benedito Nunes.
Neste trabalho, faz-se um recorte da segunda parte da tese em questão, em que serão apresentados aspectos críticos de “A náusea”, ensaio que, ao lado de mais quatro: “A experiência mística de G.H”; “A estrutura dos personagens”; “A existência absurda” e
1 Doutoranda em Teoria e Crítica Literária do Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista da CAPES. Orientadora: Profª. Drª. Suzi Frankl Sperber.

“Linguagem e silêncio”, integrou o livro inicial de crítica literária de Benedito Nunes, O mundo de Clarice Lispector (ensaio), no qual ele relacionou a produção dessa autora com as teorias desenvolvidas em Ser e tempo, de Martin Heidegger.
O mundo de Clarice Lispector (ensaio) foi publicado em 1966, em Manaus, pelo governo do Amazonas, com pequena tiragem. Os ensaios do referido livro já haviam sido publicados em jornais e revistas. Neles, Nunes faz uma análise baseada na filosofia da existência, principalmente, a de Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre.
Clarice Lispector, de todos os ficcionistas estudados por Nunes, está no centro de suas atenções. Os romances e contos da autora de Laços de família (1960) são importantes para as reflexões do pensador belenense sobre filosofia e literatura. A propósito, num artigo publicado em 2005, “Meu caminho na crítica”, onde faz um balanço de sua trajetória de crítico literário, começa citando a autora que, por meio de seus escritos, leva-o a refletir sobre a cultura e a natureza.
O ensaísta paraense, nos referidos textos, pratica uma crítica que valoriza a obra de Clarice, chamando a atenção de estudiosos que não conseguem ver a importância de certos “temas e situações” constantes da obra da ficcionista brasileira, o que fica evidente na introdução de O mundo de Clarice Lispector (ensaio).
Verifica-se que Nunes não é o primeiro a analisar a obra de Clarice Lispector. Porém, parece ter sido, naquele momento, quem mais se preocupa com a escrita da autora, já que ele continua, por vários anos, estudando a obra dela e publicando ensaios em jornais e livros.
Por meio de estudos que vinha empreendendo desde a década de 1940, utiliza a filosofia existencialista, porque percebeu que “certos temas e situações” da Obra de Clarice Lispector poderiam “ser melhor compreendidos à luz de categorias comuns à filosofia da existência” (NUNES, p.11). Além dessa teoria, no primeiro ensaio do livro em pauta, compara a obra dela com A náusea (1938), de Sartre, justificando que Clarice Lispector é uma “extraordinária escritora”, mostrando que a obra dela, especialmente A Paixão Segundo G. H ainda não havia sido devidamente avaliada.
Então no ensaio “A náusea”, título homônimo ao do romance sartreano, analisa três textos de Lispector, atentando para “a experiência da náusea” no comportamento das principais personagens das obras em análise: Ana, protagonista da narrativa “Amor”, do livro de contos Laços de família; Martim, do romance A maçã no escuro (1961), e G. H., do romance A paixão segundo G. H. (1964), para mostrar a “concepção-do-mundo” na ficção clariceana.

Para esse estudo, Nunes retoma inicialmente a filosofia da existência de Kierkegaard, que demonstra a importância da “experiência vivida”, ou seja, da existência concreta do individuo e de sua subjetividade, que, segundo ele, vai além de um saber racionalista.
A partir do olhar filosófico em que os dramas das personagens das obras em estudo parecem espelhar os dramas humanos, Nunes observa que a ficção de Lispector insere-se no contexto da filosofia existencialista, contexto esse formado pelas “doutrinas que, muito embora diferindo nas suas conclusões, “partem da mesma intuição kierkegaardiana do caráter pré-reflexivo, individual e dramático da existência humana” e tratam de problemas como “a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, a comunicação das consciências”, alguns dos quais “ignorados” ou subestimados “pela filosofia tradicional”.
Conquanto reconheça que, na ficção clariceana, existem “afinidades marcantes com a filosofia da existência”, deixa claro que sua percepção da filosofia existencial, nas obras da escritora brasileira, não fecha para outras possibilidades de análises.
Tomando por referencial teórico as concepções de náusea, angústia e medo, enfocadas em O conceito de angústia (1844), de Kierkegaard, Ser e tempo (1927), de Heidegger, e O Ser e o nada (1943), de Sartre, bem como outros filósofos, a exemplo de Pascal, e ainda calcado no romance A náusea, de Sartre, Nunes analisa, no ensaio homônimo, as três obras referidas de Clarice Lispector, apontando as semelhanças e diferenças entre a produção da escritora brasileira e a do escritor francês. E, ao empregar essas teorias filosóficas em sua análise, traz, para a crítica literária nacional do período, um olhar diferenciado daquilo que vem sendo feito por outros críticos no Brasil.
Após fazer menção a Kierkegaard, passa a tratar da experiência da náusea, nas aludidas obras de Clarice Lispector, do ponto de vista de Sartre, cuja náusea2 é descrita como “resultando da mudança qualitativa da angústia, é a forma emocional violenta que esse sentimento assume quando arrebata o corpo e se manifesta por uma reação orgânica definida3”, ou seja, a náusea é a expressão física da angústia quando:
Sentimo-nos existindo, em confronto com a nossa própria existência, sem a familiaridade do cotidiano e a proteção das formas habituais da linguagem, sentimo-nos, ainda, que essa existência é uma irremediável contingência, ameaçada pelo Nada, [...], que nos dá a compreensão do ser (NUNES, 1966, p. 16).
2 Jean-Paul Sartre em seu livro O Ser e o nada (1943), no primeiro capítulo “A Origem da negação”, afirma que a “angústia, portanto, é a captação reflexiva da liberdade por ela mesma” (p. 84).
3 Benedito Nunes, p. 16.

Sob tal ótica, reconhecendo a lição heideggeriana de que a linguagem, na condição de casa ou morada do Ser, representa uma instância de refúgio da condição humana, Nunes aproxima a percepção sartreana de angústia das teorias de Heidegger, para mostrar a diferença entre angústia4 e medo, sentimentos descritos pelo filósofo alemão, mostrando que “a angústia é um sentimento de alcance metafísico” e, portanto, diferente do medo, pois “tem-se medo de algo definido, de um ser particular (intramundano)” e tem-se “angústia sem saber de quê“ (NUNES, 1966, p.16).
Heidegger em Ser e Tempo (1927) para discutir sobre “a questão do ser”, empregou a palavra “Dasein”, termo complexo, que Nunes traduziu para o ensaio em tela por “estar-aí”, em consonância com uma entrevista de Heidegger ao jornal Folha do Norte, de Belém, do dia 18 de dezembro de 1949, periódico em que Nunes colaborou de 1946 a 1951, intitulada A palavra de Heidegger, na qual o pensador alemão explica que a palavra “Dasein” não deve ser traduzida por existência, pois ela “exprime a realidade humana no homem. Dasein refere-se ao ser humano entre todos os seres existentes, integrado na comunidade histórica e social” (p. 3). Acrescentando ainda que a expressão “ser situado”, e não “existência”, é a mais adequada para significar a palavra “Dasein”, porque “ela exprime precisamente o enraizamento do homem na comunidade”; (...) mas esta realidade é situada no tempo e no espaço da criatura que se liga a outras criaturas e que se afirma através da angústia e do cuidado, a „Sorge‟.
A partir dessa percepção de náusea, angústia e medo, Nunes conceitua esses três sentimentos muito próximos, no entanto bastantes diferentes um do outro, para se concentrar na angústia e na náusea, conceitos que servirão de base para a análise da obra de Clarice, demonstrando que:
O mal-estar da angústia provém da insegurança de nossa condição, que é, como possibilidade originária, puro estar-aí (Dasein). Abandonado, entregue a si mesmo, livre, o homem que se angustia vê diluir-se a firmeza do mundo. O que era familiar torna-se-lhe estranho, inóspito. Sua personalidade social recua. O círculo protetor da linguagem esvazia-se, deixando lugar para o silêncio (O mundo de Clarice Lispector (1966), p. 16-17).
4 Nunes chama a atenção para o mesmo sentido de Angústia tanto na obra de Sartre quanto em Sein und Zeit. (Ser e Tempo) de Heidegger. Nos ensaios do livro O mundo de Clarice Lispector (ensaio), Nunes cita ou menciona os títulos dos livros que serviram de base teórica para seu estudo na língua original da edição.

Explica, ainda, a coincidência de sentido de angústia nas obras de Sartre e Heidegger, chamando a atenção para a obra do filósofo francês. Para o crítico brasileiro, “ela é mais minuciosa e esclarecedora5”, porque segundo esta:
É a vertigem da consciência, como ser precário, falho, não idêntico a si mesmo (Para-si), oposto ao modo de ser das coisas (Em-si), e que cria, devido à sua própria carência através das possibilidades que projeta no mundo, o sentido da existência. Originária, a liberdade dimensiona o Em-si, sob forma de “realidade”; mas o Em-si, para o qual se volta a consciência e que de certa maneira a polariza, nem com ela coincide, nem pode determiná-la. Aspirar pelo Ser é para o homem, condenado à liberdade que a sua condição ontológica impõe, “une passion inutile” (NUNES, 1966, P. 17).
Em seguida passa analisar o romance A náusea, de Jean-Paul Sartre, sugerindo que há pontos semelhantes e divergentes entre a obra da escritora brasileira e a do pensador francês, cujos protagonistas, num dado momento de suas historias, tomam consciência do mundo, da existência e, por isso, sofrem, assemelhando-se a seres humanos, porque diz Nunes:
A angústia me desnuda, ao reduzir-me àquilo que eu sou: uma consciência indigente, a quem coube a maldição e o privilégio da liberdade. Transpondo-me ao extremo de minhas possibilidades, revela-me a grandeza e a miséria do homem – grandeza em razão da liberdade, e miséria porque, tudo podendo ser-nos imputado, a nossa responsabilidade é absoluta. Vivemos, afinal, num mundo puramente humano, onde a única transcendência deriva da consciência6 (1966, p. 17).
É nessa clave que as personagens clariceanas transitam acometidas de repente de uma consciência sobre suas vidas, relembrando o passado e percebendo o presente em que vivem, ao mesmo tempo em que descobrem que os fatos corriqueiros até então não percebidos são gratuitos, contingentes e, por isso, de acordo com o crítico, tais personagens sentem náusea.
Assim, o ensaísta aproxima as três personagens clariceanas analisadas no ensaio ao personagem Roquentin, o protagonista de A náusea, de Sartre, mostrando que aquelas, a partir da tomada de consciência do mundo, das coisas que as rodeiam, em um determinado momento de suas existências, sentem medo e posteriormente passam por certo mal-estar
5 Em O dorso d tigre, de 1969, Nunes retira essa afirmação de que a “descrição que Sartre faz desse sentimento é mais minuciosa e esclarecedora que a de Heidegger.
6 Na edição do livro O mundo de Clarice Lispector (ensaio) (1966), Nunes usa a primeira pessoa do singular em seu discurso, havendo um certo egocentrismo na sensibilidade com relação ao foco de sua análise (Isso também foi percebido no discurso da obra filosófica O ser e o nada, de Sartre). Em O dorso do tigre (1969), há uma mudança para a primeira pessoa do plural nas análises dos mesmos textos. Essa mudança linguística, de certo modo, altera o sentido interpretativo, que se torna mais abrangente, porque transforma aquela sensibilidade num eu coletivo.

físico, chegando à cólera e à náusea, como é o caso de Roquentin. Esse é um historiador que chega à cidade de Bouville, com o intuito de escrever a biografia do marquês de Rollebon, mas, justamente num jardim, lugar ameno de contemplação, se depara com a raiz de uma castanheira e, segundo o crítico em apreciação, é suplantado pelo formigamento da existência, logo se desencanta com o seu trabalho com a sociedade da pequena cidade, com os homens e com a falta de sentido de sua própria vida, sentindo-se impotente diante do mundo, portanto acometido pela náusea, reconhecendo o perigo da existência, pois:
O corpo de Roquentin cede a essa corrente impetuosa do ser, no meio da qual a sua consciência apenas consegue flutuar a princípio impulsionada pelo medo, depois por um mal-estar físico, que se transforma na emoção ambígua, barroca, descrita como “estase horrível‟ e “deleite atroz”, confinando com a repugnância e a cólera (NUNES, p. 18).
As personagens de Lispector, assim como Roquentin, também se angustiam e chegam à náusea. O crítico paraense mostra que, para Ana, do conto Amor, uma dona de casa que vive tranquila com marido e filhos numa casa confortável, bastou ver um cego que mascava chicles para entrar em profunda crise, sua desagregação interior é profunda, deixa cair do seu colo as compras; o saco de tricô e os ovos se esparramam no bonde. Ela sente um mal-estar (respiração opressa, etc):
O mundo se tornava de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio a tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana agarrou-se ao banco da frente como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram” (Laços de Família, p. 27. Apud O mundo de Clarice Lispector, p. 20).
Ana desce transtornada do bonde e entra no Jardim Botânico, num ambiente colorido e ameno de fim-de-tarde, que se transforma, de súbito, num viveiro de agitadas existências. Logo, de acordo com Nunes:
principia por todos os lados o assédio das coisas, já estranhas, mobilizando forças secretas, que se derramam em ação indormida, presenças sensíveis, outrora familiares, repentinamente estendem garras ocultas, destilam sumos, elaboram volumes e carnações. São os movimentos incontroláveis porém serenos da maquina do mundo, em pleno funcionamento. Sem descontinuidade, no giro da existência proliferante, que fascina e repugna, essa máquina fabrica vida e morte. (...) “Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo e era fascinante... As árvores estavam carregadas, o mundo era rico que apodrecia“ (Laços de Família, p. 29, Apud O mundo de Clarice Lispector, p. 21).

O segundo exemplo do sentimento da náusea demonstrado pelo critico está presente na personagem Martim, de Maçã no escuro. Essa personagem, que supostamente assassinou a esposa e fugiu para uma fazenda onde passa a trabalhar, conforme o ensaísta, é uma personagem que se impõe a não pensar, mas ser. O sentimento de náusea ocorre num dos momentos decisivos de sua experiência no trabalho com os animais, a que o crítico chama de:
renovação, no caminho da conquista de si mesmo, é a descoberta e a tentativa de assimilação dos elementos sensíveis, brutos, penumbrosos, proliferantes e fortes da vida num curral de vacas, local onde Martim encontra, sob forma de vida ativa, de matéria operante, que segue curso impassível, o sórdido, o fecal (NUNES, p. 21).
Essa personagem, na apreciação do crítico paraense, fracassa no debate contra o passado que não consegue desfazer. Todavia Martim nutre uma esperança absurda:
sem relações com o crime cometido muito antes, e com as pessoas que o rodeava.(...). Próxima da quietude das coisas aceitas e vividas independentemente de confiança e temor, do Bem e do Mal, a expectativa quieta, silenciosa, que nada mais pede ao futuro e ao possível, recua para dentro de si mesma, tornando-se compreensão muda, ou entrega inevitável do Ser (O dorso do tigre, p. 99).
Essa percepção do crítico belenense é demonstrada com vários fragmentos do livro A maçã no escuro, de Clarice Lispector, do qual retiramos exemplo sobre o entendimento do mundo, que Martim vai absorvendo, chegando ao ápice de compreensão desse entendimento e de sua vida:
Caindo em êxtase diante da vida impessoal da natureza, vislumbra a conexão de sua existência com a de todo o universo, conexão a que a náusea emprestará um cunho de participação orgânica (NUNES, p. 22).
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Ali era o escuro ar de que vive uma coisa viva. E Martim estava bem cercado pelas coisas que ele entendia: as moscas desovavam. E o sentido daquilo era o sentido mais primeiro daquele homem: estava ali como se houvesse um plano que ele ignorava, mas a que uma planta se agregava com a boca e a que ele próprio correspondia sentando-se muito evidentemente na pedra – sentar-se numa pedra estava-se tornando sua atitude mais inteligível e mais ativa... (A maçã no escuro, p. 91. Apud O mundo de Clarice Lispector, p. 22).
Por último, Nunes demonstra o desencadeamento da náusea na personagem-narradora G. H, do romance Paixão segundo G. H, cujo momento de compreensão do mundo e de si mesma, segundo o crítico, ocorre quando a protagonista entra no quarto da empregada que acaba de sair do emprego e vê uma barata saindo do armário. Esse inseto muda a compreensão da existência de G. H, porque, de acordo com Nunes: Condensam-se, pouco a pouco, em torno desse inseto, sentimentos contraditórios que vão crescendo. Na apreciação de Nunes, G. H. passa da:

comum aversão das donas-de-casa por baratas, o simples nojo físico, o medo, e até o súbito interesse despertado pelo inseto caseiro, dão lugar a uma estranha coragem, misto de curiosidade e de impulso sádico-masoquista com que G. H., fechando a porta do guarda-roupa sobre o corpo tão animal, perpetra o ato decisivo (NUNES, p. 24).
Quando G. H. vê a barata esmagada, o nojo se aprofunda, a ponto de secar-lhe a boca e revirar-lhe o estômago pelo nojo violento que se transforma em náusea:
É que a mulher, então, começou verdadeiramente a ver pela primeira vez a sua vítima; e vendo-a, descobriu o ser que nela havia, a matéria organizada em cascas, antenas e olhos, matéria crua, viscosa, repelente, que escorreu, pastosa, do corpo esmagado. Mas, de imediato, através disso tudo que sentia, da náusea que a dominava, G. H. resvala para o êxtase: descobre, afinal, que ela e a barata participavam da mesma existência nua, ancestral, inumana, e possuíam a mesma identidade. (O mundo de Clarice Lispector, p. 23).
Os exemplos dados pelo crítico sobre as obras analisadas mostram que, nas obras de Clarice Lispector, é a partir de um dado momento quando as personagens se deparam com algo aparentemente corriqueiro, comum no dia-a-dia dos seres humanos, que as personagens vão despertar para o sentido da vida, como ocorre com G. H.:
Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama - era lama, e nem sequer lama já seca, mas lama ainda úmida e viva, era um lugar onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes da minha identidade (A paixão segundo G. H, p. 57. Apud O mundo de Clarice Lispector, p. 23).
Benedito Nunes, na conclusão do seu ensaio “A náusea”, observa que: Como a angustia, a náusea não tem por objeto um ser determinado. Embora desencadeada pela contemplação de uma coisa em particular, a sua causa real é o mundo, a existência. Sendo assim, mostra a diferença da “experiência da náusea” nos três textos de Clarice Lispector e na do pensador francês, constatando que essa experiência nas obras da autora brasileira sofre modificações contundentes, pois elas vão evoluindo. Em “Amor”, a náusea é a “crise que suspende a vida cotidiana da personagem, mas a lembrança dos filhos, marido, ainda tem forças para reter Ana à beira do perigo de viver (...); em A maçã no escuro, o estado nauseante associa-se ao descortínio instintivo que coloca Martim no plano reificado e orgânico da Natureza; mas em Paixão segundo G. H., há um aprofundamento da náusea que difere dos outros textos analisados, inclusive, difere da experiência da náusea sartreana, pois Sartre, de acordo com o crítico brasileiro:

não conferiu aos seus personagens uma liberdade fundamental. Justamente porque a náusea revela o Absurdo, é preciso criar o sentido que a existência não possui. Esse sentido, que deriva única e exclusivamente da liberdade, e é sustentado pelos nossos atos, impõe-se apesar da náusea e contra o Absurdo (NUNES, p. 24).
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Para Clarice Lispector a náusea não só interfere com a liberdade, como dela se apossa, chegando a destruí-la. Esse estado excepcional e passageiro transforma-se, para a romancista, numa via de acesso à existência imemorial do Ser sem nome, que as relações sociais, a cultura e o pensamento apenas recobrem sem conseguir superá-lo. Interessa-lhe o outro lado da náusea: o reverso da existência humana, ilimitado, caótico, originário (NUNES, p. 24).
Nunes demonstra em seu ensaio que a experiência da náusea sartreana, no romance de Clarice Lispector em tela, eleva-se para uma experiência mística porque:
O aprofundamento da náusea, como revelação do Ser e via Mística da união com a sua inexpressável realidade, é a nota marcante de Paixão Segundo G. H. Narra-se aí uma experiência espiritual contraditória, em que o sacrifício e o sacrilégio se confundem, a redenção significando a anulação da personalidade e o amor a entrega do Eu a potências cósmicas indiferenciadas, não-éticas, que têm um lado sóbrio e diabólico, infernal, e outro luminoso e divino (NUNES, p. 24).
Desse modo, a experiência da náusea sartreana em A paixão segundo G. H. segundo Nunes, está em consonância com as teorias da existência, mas, ao mesmo tempo, em dissonância com a visão de Sartre, haja vista o exemplo da experiência da personagem G. H. com a barata, cuja descoberta do inseto e de si mesma aponta para outro sentido do humano:
Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos. Essa revelação humilde e arrasadora de G. H, conforme Nunes poderia ser uma réplica à conhecida afirmação sartreana de que nós vivemos num mundo essencialmente humano, “où il n‟y a que des hommes” (O dorso do tigre, p. 102).
Referências bibliográficas
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
_____Ser e tempo. Parte II. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
LISPECTOR. Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
_____A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
609
_____Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998
NUNES, Benedito. O mundo de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1966.
_____O dorso do tigre. São Paulo: São Paulo: Ática, 1969.
_____Meu caminho na crítica. Revista Estudos Avançados: Rio de janeiro, 2005.
WIZNITZER, Luiz. A palavra de Heidegger. Entrevistado Heidegger. Folha do Norte, Belém, 18 de dez. 1949, Arte Suplemento Literatura, p. 1-3.

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Professor da UECE (adjunto) e do CMF (titular); especialista em literatura luso-brasileira (UFC) e mestre em literatura (UFC)

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